“A excursão predileta”
Manhã cedinho.Deixo para traz minha Vitória intramuros, minha casa, pomar e jardim.Transponho o portão. A rua do Cruzeiro é curta e sem pavimentação. Estou descalço, recebendo as vibrações intimas da terra ao pisa-la levemente umedecida pelo orvalho noturno. Ao fim dela ergue-se imponente sua sentinela, o patriarca talvez de todos os Flamboyants da cidade.
Explode em uma menstruação intensa no hermafroditismo da espécie, emoldurado pela menstruação tênue e pálida da madrugada em seus primeiros albores, entre pinceladas largas de azul e veronese. Paro e o contemplo por alguns minutos como se fizesse uma silenciosa oração matutina, já que há àquela hora rua e largo estão inteiramente desertos. Não o transponho. Não descerei a D.Fernando à direita, nem descerei a Cel. Monjardim ou Gama Rosa a esquerda, nem seguirei enfrente ate a Igreja de S. Luzia, início da rua Jose Marcelino. Deixarei esse pequeno percurso para mais tarde. Fi-lo durante os anos que duraram todo o primário feito no Externato Julia Penna, situado no flanco da Catedral, naquele tempo ainda no “osso”, isto e sem revestimento externo, com os andaimes enegrecidos pelo tempo, pejados de pombos vadios, molduras delineando os imensos janelões do Gótico, que abrigariam mais tarde magníficos vitrais. Olho ainda a arvore*. Bailam pétalas no ar tangidas pela leve brisa, construindo em redor do tronco negro um tapete mágico de fores vermelhas repousando na verde grama. Tenho uns 10 a 12 anos. “Estou armado”. Duas atiradeiras ou setas como a chamávamos feitas com o maior esmero, espetadas no cinto sob a camisa leve, embornal à direita cheio de pelotas de argila vermelha e endurecidas no forno na véspera, e a esquerda outro embornal com o farnel, pois ninguém é de ferro. Parecia um cangaceiro mirim.Subo a ladeira à esquerda junto ao flamboyant, via de acesso naquela época, para a Fonte Grande e morro do Basto, meu objetivo.Não tenho hora nem pressa para voltar.E o dia todo “passarinhando”. Meu relógio e o sol, que dentro em pouco iluminara a platéia.Passo ao largo do antigo necrotério.Pouco acima há uma estranha construção em ruínas*, junto a um lajeado onde se ergue um imenso Pau D’alho dominando a capoeira fechada.Logo surge um descampado junto à pedra da Cotia, local preferido da molecada empinadora de raias e papagaios, e a casa de Manoel Carroceiro. A partir daí começava a Mata Atlântica no meu tempo ainda rala pela ocupação urbana e adensando-se à medida que fosse subindo. Mas acima, atravessava a vertente da Fonte Grande. Para alcançar o terreiro das “meninas” aonde ia muitas vezes comprar jacas. Eram três simpáticas velhotas de idade indefinível que naquelas alturas, no tempo e no espaço viviam solteiras e solitárias. Agora só mais um pouco de subida, para atingir o divisor de águas. Uma cancela. O pasto verde, animais pastando e a mata mais densa, a sede da fazendola, naquele tempo adquirida por Olinto Aguirre, defensor daquele micro ecossistema, na preservação da mata e caça proibida. Já se ouvia os silvos dos sagüis estrelas, na copa das arvores mais altas, em meio os arrulhos de rolas e juritis.
Parava um instante para o descanso da subida. Olhava para traz e para baixo e abraçava com a vista o anfiteatro formado desde os contrafortes do Rosário, e da Fonte Grande, a cavaleiro, via a meus pés a Cidade cativa, o Presépio Armado no sopé dos morros, de onde subiam à surdina pela distância alguns sons citadinos, misturados ao rumorejar das folhas das arvores tocadas pelo nordeste brando. Olhando na linha do horizonte, veria o Penedo a vasta planície continental, a fimbria branca da espuma das vagas das praias para o Sul e o vasto oceano, no limite do céu, sem nuvens. Se olhasse em frente para o Norte, veria no primeiro plano a mata que descia e circundava os Fradinhos, junto a Jucutuquara, e longe se destacando da planície o vulto azulado do Mestre Álvaro lá para os lados do Queimados e da Serra. Ali começava minhas andanças sob capoeiras altas e matas. Escolhia as aroeiras cujos frutos atraiam sabias e sanhaços. Tomava um caminho que descia para a Ilha das Caieiras, voltava para o descampado atrás das rolinhas. Com um vidro de 30 g vazio imitava o arrulhar das juritis para o alcance da atiradeira. E as pelotas sibilando no ar.Ao meio dia, um descanso para o farnel, deitado na grama. A sombra de uma arvore, e lá em cima o céu azul sem nuvens, sentia-me amparado pela natureza exuberante que me circundava.Seria a caça, um derivativo para me postar bem junto a ela? Estava atento as mutações de cor e luz no correr do dia, o que me serviu bastante quando mais tarde ousei interpreta-la no retângulo mágico das telas. Minha cidade estava lá cativa aos meus pés, e desfrutava um panorama deslumbrante. Os raios oblíquos do sol, já anunciavam, o fim da tarde. Era hora do retorno. A descida era rápida e suave o esforço. Ao chegar a minha rua uns pelotaços no cacho do coqueiro baba de boi, se não os encontrasse caídos no chão, doces como mel, o nosso chiclete a época.Entregava a matança a minha avó, que se encarregava da depena e preparo, e me entregava a um banho reparador.No outro dia, pronto para o colégio, calças marrom, e blusa carijó do Julia Penna, a mesa tinha um prato com minhas vítimas,
- Matou, tens que comer! Sentenciava minha avó!Após o almoço, tomo a pasta com cadernos e o lanche invariavelmente pão, queijo e goiabada, e uma garrafa com café e leite. A mistura do odor do lanche e o couro da pasta ainda hoje, transcendem em minhas narinas, apesar do tempo transcorrido. Desço a minha rua, passo sob o flamboyant, ganho o largo, subo a curta ladeira entre o Quarto de Queijo e o Colégio S.Vicente de Paulo e paro com o sorriso maroto nos lábios, lembrando da cara do motorneiro do bonde Circular, “puto da vida”, porque, várias vezes, eu e outros moleques de minha “gang”, naquela subida, tínhamos posto graxa nos trilhos, o que tolhia a marcha do veículo, deslizando e patinando sem aderência. O cobrador tinha que remover o excesso de graxa, e o motorneiro abrir o deposito de areia para jogar nos trilhos. Só assim era possível o veiculo ganhar o aclive ate a Igreja S. Luzia, entre imprecações que espelhavam o mau humor dos dois homens diante do imprevisto. Que era uma sacanagem era, sem dúvida. Eu caminhava pela rua José Marcelino, à esquerda o casario colonial compacto só intercalado em estilo pelo Palácio do Bispado. A Catedral era uma só massa atijolada sem revestimento. Transponho o início da ladeira Baltazar em cujo topo, havia a venda de “seu Aprijio”. No flanco da Catedral, surgia o Colégio Julia Penna, fachada portando a Bandeira Nacional. Quedo-me preso por cinco longas horas, o sol emoldurando e batendo forte na mata do Rosário e Fonte Grande, acirrando o meu desejo de liberdade. Mas D. Amanda Lacourt* é paciente, o que torna mais curta a espera pela saída às 17 horas. Agora e ganhar a rua, correr para casa com os irmãos, para conferir quem chegaria primeiro, sedentos, para botar o bico do grande bule de café ralo na boca e matar a sede.
“China pau, lig lig lig lé! China pau, lig lig lig lé!”
- Esta expressão idiomática profundamente chula, ridícula e idiota teria a ver, a título de gozação, como uma referência a orientais, sobretudo as chinesas. Penso tê-la ouvido no Velho Politeama em uma daquelas memoráveis e concorridas sessões colosso, às segundas-feiras em um pastelão qualquer, ou provavelmente em circos, que chegavam a Vitória trazendo em seu elenco trupes de chineses, que exibiam no picadeiro suas habilidades em números de equilibrismo e malabarismo “gritados” por algum gaiato na platéia.
Este capítulo inspira-se nos “Dias Antigos” do amigo Renato Pacheco por ter avivado em minha memória uma das muitas travessuras que fiz no Largo do São Francisco. Ele se refere ao comércio de tinturaria e lavanderia que em Vitória era monopólio de chineses, radicados em nossa terra. Dá localizações exatas; Rua Sete de Setembro, Jucutuquara, Vila Rubim, e por último a do Largo do São Francisco, em sua pesquisa minuciosa, precisa e honesta. Foram eles os precursores dos vistosos e enormes “out doors” que tomavam conta de toda a fachada dos sobradões, chamando a atenção da freguesia pelo bizarro e extravagante colorido baseado em cores cruas, portando em negrito os ideogramas de sua peculiar escrita, mormente no São Francisco, esquina da Ladeira do Caramuru, perto de minha casa, onde eu parava, às vezes, curioso, olhando o trabalho executado por seus ocupantes. Não dava para alcançar com a vista, os grandes tanques de lavagem situados nos fundos do prédio, já que a passagem das roupas era executada no vasto salão fronteiriço à porta de entrada, alcançado por meu olhar, de piso cimentado liso, pé direito alto com ganchos, que sustentavam vastos cabides onde a roupa passada era pendurada, protegida da poeira por alvos panos de morim barato já que naquele tempo nem se sonhava com material plástico.
No centro do salão, sobressaía com chaminé, um forno central de razoáveis proporções em formato de um barril facetado todo em ferro, portinhola para a introdução do carvão vegetal que o alimentava ao qual os ferros eram acostados à face externa, recebendo desta forma a intermação.
Eram ferros especiais importados, de corpo inteiriço com uma haste para a empunhadura tomada pelo passador, que portava à mão um grosso pano para protegê-la, e levava-o a altura do rosto para aferição térmica. Vários ferros eram manipulados, o que permitia a rotatividade, à medida que iam esfriando.
Estava eu com 12 ou 13 anos, e olhava curioso aquela azáfama, trabalho ligeiro executado por vários homens. Intrigava-me aquela pele extremamente clara, como se nunca tomasse sol, cabelos muitos pretos, lisos, espigados pelo corte a escovinha, comum à época, olhos amendoados que lançavam olhares enigmáticos, pelos quais não se podia mesurar reações íntimas, face uma provocação.
- Que diabo ou que deuses teriam tangido aquela pequena colônia de asiáticos até minha terra, dado a incomensurável distância entre os dois países?
Leitor assíduo de jornais, tinha um jeito peculiar de o fazer. Abria no chão, invariavelmente, o velho “Correio da Manhã”, e bunda empinada, cotovelos apoiados no piso, cabeça sustentada pelas mãos, as noticias nacionais e internacionais se sucediam. Estávamos em 32 ou 33 e assim tomei conhecimento da guerra sino-japonesa, os segundos invadindo a China Continental através o Mandchu-Kuo, visando o imperialismo nipônico à conquista de espaços físicos, face a incontrolável densidade demográfica em suas ilhas. A China se debatia em lutas internas e o fato obrigou Chiang-Kai-Sheck e Mão-Tse-Tung, a unificarem seus exércitos, para combaterem o inimigo comum.
-Teriam esses conflitos desencadeados a fuga de chineses formando “diásporas” em vários países? Mas, porque não a América, precisamente o Portal de São Francisco engrossando a leva de emigrantes para a sua famosa China Town? Era só atravessar o Pacifico e ficar mais próximo da terra natal e não o São Francisco em minha terra, onde se situaram a uma distancia imensa da Mãe Pátria. De repente, a sala ficou com um só operador, o que me encorajou provocá-lo. Botei os indicadores para cima, pulando e gritando:
-China pau, lig, lig, lig, lé, China pau, lig, lig lig lé!
E, para minha surpresa e frustração não houve nenhum gesto de reação.Aquele homem franzino, de baixa estatura, entregue ao seu labor parecia ignorar-me e não se importar com o insulto da provocação. Repeti várias vezes, gestos e palavras. De repente, sai-lhe da mão o ferro que empunhava, atravessando o espaço, batendo com estardalhaço na parte interna da porta em que eu estava postado. Não posso descrever o susto por aquela reação súbita e inesperada. Fugi ligeiro do local, temendo um desforço pessoal, e meti a cara pra casa mais pálido que aquele oriental.
Só então passado o susto inicial, perplexo, dei conta que tinha extrapolado em muito a tradicional e proverbial paciência chinesa. Hoje passado tanto anos recordo o episódio, sorriso nos lábios, maravilhado ao tomar conhecimento da milenar cultura daquele povo.
Aquele fedelho de 12 ou 13 anos, produto da cultura ibérica por conquista e francesa por adoção, com os horizontes limitados pela pouca idade, iria se defrontar, na maturidade, com os mais representativos alicerces do pensamento chino.
LAO-TSE, CHUANG-TSE, MENCIO, e CONFÚCIO, através seus paradoxos, epigramas, e aforismos, enriqueceram meus horizontes, ávidos de conhecimento.
O primeiro remonta a 2.300 antes da nossa era, quando muitos povos do Ocidente viviam num “Paleolítico físico e mental”. Dele, os paradoxos espelham idéias breves; “o ritmo de vida, a unidade do mundo e do fenômeno humano, a importância de guardar a simplicidade original da natureza humana, o perigo dos governos fortes; a interferência nos costumes simples do povo; a doutrina do “wu-wei” ou da inação, correspondente ocidental do “laisse faire”; as lições de humildade; a quietude; a loucura da força;do orgulho;da auto- presunção”.
Em um só exemplo, Lao-Tse reduz George W. Bush, Hitler, Mussolini, Franco, Stalin, Pinochet e outros títeres ocidentais a fantoches ridículos quando afirma;
“- Aquele que se propõe a dirigir os homens por meio do Tao
Deveria se opôr a toda a conquista por meio das armas;
Pois que tais cousas devem ser refreadas;
Onde estão as armas brotam somente sarças e espinhos;
O nascimento de uma grande hoste, e sempre seguido de uma destruição;
Quanto mais proibições, mais o povo empobrece;
Quanto mais armas ferinas existem;
Mais o caos prevalecerá dentro do Estado.
Quanto mais engenhos técnicos Mais cousas perniciosas serão inventadas
Quanto maior o número de leis;
Maior o número de ladrões e saqueadores; ”
Nossa Senhora da Penha! A última assertiva lembra-me o País em que nasci e vivo, cujo Judiciário jaz arqueado sob o peso de leis para tudo e, no entanto, o braço curto da JUSTIÇA não alcança o colarinho branco dos poderosos.
- Isto é de uma atualidade impressionante!
Sua filosofia e aplicável no mundo sujo, material e espiritualmente descrente em que vivemos.
“A integração do Homem à Natureza e de todos os seres viventes nela, harmonizados; sublinhando a urbanidade e a bondade, que devem presidir as relações humanas·”.
O culto aos antepassados estabelece a lembrança e o respeito aos que nos precederam neste mundo, nas correntes familiares, de acordo com princípios reencarnatórios, defendidos no Ocidente por Alan Kardec e seus seguidores.
O TAO é o absoluto, ignoscível, o imponderável e Eterno, a Amplitude Cósmica abarcando todo o Mundo Manifestado, seres, cousas, mundos e astros em um Universo ainda em expansão desde o “Big-Bang” inicial, atestado pela Ciência, negando com isto os princípios do Antropomorfismo que limita a Divindade ao restrito mundo das formas, apequenando-o nas três dimensões do Universo físico; altura, largura e profundidade.
Baruch Spinosa, entre nós, teve que se exilar na Holanda, fugindo da Inquisição por comungar com os princípios taoístas, de um Deus impessoal e ilimitado.
Toda essa imensa cultura, todas essas verdades atravessaram séculos sem o conhecimento do Mundo Ocidental.Somente em fins do Século XIX e princípios do Século XX o Ocidente capitulou a sabedoria Oriental.Começam as primeiras traduções dos inumeráveis textos. James Leddge, Arthur Waley, Witter Bynner, Helen Waddel, na Inglaterra, Hans Bethge na Alemanha e Franz Toussaint na França, entre muitos outros se dedicaram a este mister. Aqui, em meados de 1950, chega até nós os dois alentados volumes “a Sabedoria da Índia e da China”, anotados e colligidos por Lin Yutang,com traduções do Inglês por Hayddé Nicollussi, Thomas Newslands Neto e Marques Rebelo; Ed.Pongetti, e um pequeno volume da coleção Rubayat, Ed .José Olímpio,contendo a poesia de Mon Kao Jen, Li-Tai-Po, Tu-fu, Wang Wei, entre outros.
A partir daí, o conhecimento pelo Ocidente da cultura Oriental vai desencadear uma revolução cultural, mormente no mundo das Artes.
Aos estertores do romantismo, em fins do Século XIX, a mensagem do Impressionismo surge na França. Aos acordes do “Apres midi dun faune” com forte sabor oriental, responde nas artes plásticas às manifestações pictóricas de Vicent Van Gogh, Picabia, Pissaro, Monet, Manet e novas formas de manifestações artísticas surgem, graças aos horizontes ampliados pela fusão das duas culturas.
Na Alemanha as traduções de Hans Bethge caem em mãos de Gustav Mahler, e torna-se o germe de sua obra prima “Das lied van der Erde” (A canção da terra).
Ao longo da obra, diz Michael Kennedy, seu biógrafo, “sentimos o hedonismo de Mahler, sua relação extasiada com a natureza, sua solidão, seu irresistível senso de pungência diante da brevidade da vida terrena, e, aprendemos seu júbilo em face da beleza da terra e do retorno da Primavera”. O último dos poemas orquestrados o “Abschied”(Adeus) de Wang wei, são 30 minutos de verdadeiro encantamento orquestral e sonoro
“A terra cara por toda parte
Floresce em Primavera e de novo reverdece
Por toda a parte e eternamente resplandece
Brilhante e azul
Eternamente...Eternamente...Eternamente”
O contralto canta a última linha sete vezes repetindo ewig (forever) baixando a entonação ate quase um suspiro, um adeus que atinge o limite do Eterno, uma visão aproximada da exclamação extasiada de Gagarin a bordo do sputinik
“ELA É AZUL”
E aquela poeira azul desaparece na Amplitude Cósmica, num misto de saudade e perplexidade, e que proporcionou a todos os que viveram nela, enquanto viventes, lindas manhãs e reluzentes crepúsculos.
“A hora em que te falo, minha amiga
As sombras no horizonte se adensam
Já se ouve o murmúrio do regato
E as aves procuram os primeiros galhos para passarem a noite”
Esta passagem expressa um panteísmo que atinge a Enteléquia de qualquer mortal.
E, agora como ao voltar desta longa excursão ao Oriente, e centrar minha Vitória querida, por pensamento, claro, como sempre faço, pego ao acaso, um poema na “flauta de jade”
“O luar se derrama, sobre a cama de meu quarto
Parece a geada!Ergo a cabeça, vejo a lua,
E lembro saudoso a cidade em que nasci.”
Imagino-me saindo do Politeama, da sessão colosso das segundas-feiras, em noite de luar pleno. Atravesso a Av. da República e entro no Café Teixeira para a clássica média, com pão e manteiga.Um alentado pão, talvez da Padaria Sarlo, já fechada a aquela hora, com manteiga mesmo, e não as “hodiernas” ou melhor odiadas margarinas atuais. Já na rua, esgueiro-me subindo a Rua Henrique Valadão, em direção ao Cais de S.Francisco. Silencio e calma, só interrompidos, vez em quando bruscamente, pela gataria em seus notívagos, escandalosos e ruidosos coitos somados ao ruído das perseguições às fêmeas sobre telhado de zinco.
Lembro-me da peça de Tenesse Willians, só que o calor das folhas de zinco já estava amainada àquela hora. Adiante em frente à casa dos Machados, sobe do jardim o doce aroma de uma dama-da-noite. Subo a ladeira do Caramuru, passo sob o viaduto e ganho o fim da ladeira, já no Largo. Olho para a direita e vejo o sobradão da Tinturaria imerso na sombra noturna e a porta que susteve aquele ferro em mim arremessado. Seus habitantes dormem àquela hora, o sono justo dos trabalhadores cansados da labuta diurna. Sonham talvez com os dias de mocidade nas ruas de Soochow, ou Cantão talvez, e quem sabem sonham retornar ao País de origem. A lua é um disco luminoso no céu. Estranho! A luz do luar na terra em que nascemos assume uma luz diferente e, no entanto e a mesma em outros lugares.
Monologo com a minha sombra, projetada no calçamento precário. Não tenho com quem conversar na rua erma e vazia. Digo-lhe que tudo que me cerca é familiar. Sobrados, casas, postes de iluminação, árvores. O luar reflete o aço reluzente dos trilhos de bondes, e espelha-se nos vidros das janelas enquanto ando, sem pressa. Dobro a esquerda e o flamboyant, sentinela de minha rua, lá está, altaneiro, galhos projetando no chão a sombra de sua imensa copa. Subo a curta rua.Galos confusos com a intensa claridade cantam fora do fuso horário da madrugada, ainda longe de acontecer.
A luz mortiça do poste, junto à entrada do portão de minha casa, não seria necessária. O jardim e o pomar estão banhados de luz. Um tardio vaga-lume risca o espaço.
- Como é bom voltar para casa de vez em quando, mesmo que seja em sonhos. Dormirei lá esta noite. Amanhã bem cedo, irei à Tinturaria sem sustos ou medo. Procurarei aquele chinês a quem ofendi, para as minhas desculpas. Estou certo que ele compreenderá o meu gesto amigo. Acho que se expressará, em um português entendível dada a longa permanência em minha terra e, quem sabe... Falará comigo sobre Chuang-tsé, Mencius ou Confúcio, aqui não abordados, e se letrado for lerá para mim os “Seis capítulos de uma vida errante”, ou então discorrerá sobre a saga de Meng-Chiang, a esposa Imortal.
! China pau, lig lig lig lé!”
- Esta expressão idiomática profundamente chula, ridícula e idiota teria a ver, a título de gozação, como uma referência a orientais, sobretudo as chinesas. Penso tê-la ouvido no Velho Politeama em uma daquelas memoráveis e concorridas sessões colosso, às segundas-feiras em um pastelão qualquer, ou provavelmente em circos, que chegavam a Vitória trazendo em seu elenco trupes de chineses, que exibiam no picadeiro suas habilidades em números de equilibrismo e malabarismo “gritados” por algum gaiato na platéia.
Este capítulo inspira-se nos “Dias Antigos” do amigo Renato Pacheco por ter avivado em minha memória uma das muitas travessuras que fiz no Largo do São Francisco. Ele se refere ao comércio de tinturaria e lavanderia que em Vitória era monopólio de chineses, radicados em nossa terra. Dá localizações exatas; Rua Sete de Setembro, Jucutuquara, Vila Rubim, e por último a do Largo do São Francisco, em sua pesquisa minuciosa, precisa e honesta. Foram eles os precursores dos vistosos e enormes “out doors” que tomavam conta de toda a fachada dos sobradões, chamando a atenção da freguesia pelo bizarro e extravagante colorido baseado em cores cruas, portando em negrito os ideogramas de sua peculiar escrita, mormente no São Francisco, esquina da Ladeira do Caramuru, perto de minha casa, onde eu parava, às vezes, curioso, olhando o trabalho executado por seus ocupantes. Não dava para alcançar com a vista, os grandes tanques de lavagem situados nos fundos do prédio, já que a passagem das roupas era executada no vasto salão fronteiriço à porta de entrada, alcançado por meu olhar, de piso cimentado liso, pé direito alto com ganchos, que sustentavam vastos cabides onde a roupa passada era pendurada, protegida da poeira por alvos panos de morim barato já que naquele tempo nem se sonhava com material plástico.
No centro do salão, sobressaía com chaminé, um forno central de razoáveis proporções em formato de um barril facetado todo em ferro, portinhola para a introdução do carvão vegetal que o alimentava ao qual os ferros eram acostados à face externa, recebendo desta forma a intermação.
Eram ferros especiais importados, de corpo inteiriço com uma haste para a empunhadura tomada pelo passador, que portava à mão um grosso pano para protegê-la, e levava-o a altura do rosto para aferição térmica. Vários ferros eram manipulados, o que permitia a rotatividade, à medida que iam esfriando.
Estava eu com 12 ou 13 anos, e olhava curioso aquela azáfama, trabalho ligeiro executado por vários homens. Intrigava-me aquela pele extremamente clara, como se nunca tomasse sol, cabelos muitos pretos, lisos, espigados pelo corte a escovinha, comum à época, olhos amendoados que lançavam olhares enigmáticos, pelos quais não se podia mesurar reações íntimas, face uma provocação.
- Que diabo ou que deuses teriam tangido aquela pequena colônia de asiáticos até minha terra, dado a incomensurável distância entre os dois países?
Leitor assíduo de jornais, tinha um jeito peculiar de o fazer. Abria no chão, invariavelmente, o velho “Correio da Manhã”, e bunda empinada, cotovelos apoiados no piso, cabeça sustentada pelas mãos, as noticias nacionais e internacionais se sucediam. Estávamos em 32 ou 33 e assim tomei conhecimento da guerra sino-japonesa, os segundos invadindo a China Continental através o Mandchu-Kuo, visando o imperialismo nipônico à conquista de espaços físicos, face a incontrolável densidade demográfica em suas ilhas. A China se debatia em lutas internas e o fato obrigou Chiang-Kai-Sheck e Mão-Tse-Tung, a unificarem seus exércitos, para combaterem o inimigo comum.
-Teriam esses conflitos desencadeados a fuga de chineses formando “diásporas” em vários países? Mas, porque não a América, precisamente o Portal de São Francisco engrossando a leva de emigrantes para a sua famosa China Town? Era só atravessar o Pacifico e ficar mais próximo da terra natal e não o São Francisco em minha terra, onde se situaram a uma distancia imensa da Mãe Pátria. De repente, a sala ficou com um só operador, o que me encorajou provocá-lo. Botei os indicadores para cima, pulando e gritando:
-China pau, lig, lig, lig, lé, China pau, lig, lig lig lé!
E, para minha surpresa e frustração não houve nenhum gesto de reação.Aquele homem franzino, de baixa estatura, entregue ao seu labor parecia ignorar-me e não se importar com o insulto da provocação. Repeti várias vezes, gestos e palavras. De repente, sai-lhe da mão o ferro que empunhava, atravessando o espaço, batendo com estardalhaço na parte interna da porta em que eu estava postado. Não posso descrever o susto por aquela reação súbita e inesperada. Fugi ligeiro do local, temendo um desforço pessoal, e meti a cara pra casa mais pálido que aquele oriental.
Só então passado o susto inicial, perplexo, dei conta que tinha extrapolado em muito a tradicional e proverbial paciência chinesa. Hoje passado tanto anos recordo o episódio, sorriso nos lábios, maravilhado ao tomar conhecimento da milenar cultura daquele povo.
Aquele fedelho de 12 ou 13 anos, produto da cultura ibérica por conquista e francesa por adoção, com os horizontes limitados pela pouca idade, iria se defrontar, na maturidade, com os mais representativos alicerces do pensamento chino.
LAO-TSE, CHUANG-TSE, MENCIO, e CONFÚCIO, através seus paradoxos, epigramas, e aforismos, enriqueceram meus horizontes, ávidos de conhecimento.
O primeiro remonta a 2.300 antes da nossa era, quando muitos povos do Ocidente viviam num “Paleolítico físico e mental”. Dele, os paradoxos espelham idéias breves; “o ritmo de vida, a unidade do mundo e do fenômeno humano, a importância de guardar a simplicidade original da natureza humana, o perigo dos governos fortes; a interferência nos costumes simples do povo; a doutrina do “wu-wei” ou da inação, correspondente ocidental do “laisse faire”; as lições de humildade; a quietude; a loucura da força;do orgulho;da auto- presunção”.
Em um só exemplo, Lao-Tse reduz George W. Bush, Hitler, Mussolini, Franco, Stalin, Pinochet e outros títeres ocidentais a fantoches ridículos quando afirma;
“- Aquele que se propõe a dirigir os homens por meio do Tao
Deveria se opôr a toda a conquista por meio das armas;
Pois que tais cousas devem ser refreadas;
Onde estão as armas brotam somente sarças e espinhos;
O nascimento de uma grande hoste, e sempre seguido de uma destruição;
Quanto mais proibições, mais o povo empobrece;
Quanto mais armas ferinas existem;
Mais o caos prevalecerá dentro do Estado.
Quanto mais engenhos técnicos
Mais cousas perniciosas serão inventadas
Quanto maior o número de leis;
Maior o número de ladrões e saqueadores; ”
Nossa Senhora da Penha! A última assertiva lembra-me o País em que nasci e vivo, cujo Judiciário jaz arqueado sob o peso de leis para tudo e, no entanto, o braço curto da JUSTIÇA não alcança o colarinho branco dos poderosos.
- Isto é de uma atualidade impressionante!
Sua filosofia e aplicável no mundo sujo, material e espiritualmente descrente em que vivemos.
“A integração do Homem à Natureza e de todos os seres viventes nela, harmonizados; sublinhando a urbanidade e a bondade, que devem presidir as relações humanas·”.
O culto aos antepassados estabelece a lembrança e o respeito aos que nos precederam neste mundo, nas correntes familiares, de acordo com princípios reencarnatórios, defendidos no Ocidente por Alan Kardec e seus seguidores.
O TAO é o absoluto, ignoscível, o imponderável e Eterno, a Amplitude Cósmica abarcando todo o Mundo Manifestado, seres, cousas, mundos e astros em um Universo ainda em expansão desde o “Big-Bang” inicial, atestado pela Ciência, negando com isto os princípios do Antropomorfismo que limita a Divindade ao restrito mundo das formas, apequenando-o nas três dimensões do Universo físico; altura, largura e profundidade.
Baruch Spinosa, entre nós, teve que se exilar na Holanda, fugindo da Inquisição por comungar com os princípios taoístas, de um Deus impessoal e ilimitado.
Toda essa imensa cultura, todas essas verdades atravessaram séculos sem o conhecimento do Mundo Ocidental.Somente em fins do Século XIX e princípios do Século XX o Ocidente capitulou a sabedoria Oriental.Começam as primeiras traduções dos inumeráveis textos. James Leddge, Arthur Waley, Witter Bynner, Helen Waddel, na Inglaterra, Hans Bethge na Alemanha e Franz Toussaint na França, entre muitos outros se dedicaram a este mister. Aqui, em meados de 1950, chega até nós os dois alentados volumes “a Sabedoria da Índia e da China”, anotados e colligidos por Lin Yutang,com traduções do Inglês por Hayddé Nicollussi, Thomas Newslands Neto e Marques Rebelo; Ed.Pongetti, e um pequeno volume da coleção Rubayat, Ed .José Olímpio,contendo a poesia de Mon Kao Jen, Li-Tai-Po, Tu-fu, Wang Wei, entre outros.
A partir daí, o conhecimento pelo Ocidente da cultura Oriental vai desencadear uma revolução cultural, mormente no mundo das Artes.
Aos estertores do romantismo, em fins do Século XIX, a mensagem do Impressionismo surge na França. Aos acordes do “Apres midi dun faune” com forte sabor oriental, responde nas artes plásticas às manifestações pictóricas de Vicent Van Gogh, Picabia, Pissaro, Monet, Manet e novas formas de manifestações artísticas surgem, graças aos horizontes ampliados pela fusão das duas culturas.
Na Alemanha as traduções de Hans Bethge caem em mãos de Gustav Mahler, e torna-se o germe de sua obra prima “Das lied van der Erde” (A canção da terra).
Ao longo da obra, diz Michael Kennedy, seu biógrafo, “sentimos o hedonismo de Mahler, sua relação extasiada com a natureza, sua solidão, seu irresistível senso de pungência diante da brevidade da vida terrena, e, aprendemos seu júbilo em face da beleza da terra e do retorno da Primavera”. O último dos poemas orquestrados o “Abschied”(Adeus) de Wang wei, são 30 minutos de verdadeiro encantamento orquestral e sonoro
“A terra cara por toda parte
Floresce em Primavera e de novo reverdece
Por toda a parte e eternamente resplandece
Brilhante e azul
Eternamente...Eternamente...Eternamente”
O contralto canta a última linha sete vezes repetindo ewig (forever) baixando a entonação ate quase um suspiro, um adeus que atinge o limite do Eterno, uma visão aproximada da exclamação extasiada de Gagarin a bordo do sputinik
“ELA É AZUL”
E aquela poeira azul desaparece na Amplitude Cósmica, num misto de saudade e perplexidade, e que proporcionou a todos os que viveram nela, enquanto viventes, lindas manhãs e reluzentes crepúsculos.
“A hora em que te falo, minha amiga
As sombras no horizonte se adensam
Já se ouve o murmúrio do regato
E as aves procuram os primeiros galhos para passarem a noite”
Esta passagem expressa um panteísmo que atinge a Enteléquia de qualquer mortal.
E, agora como ao voltar desta longa excursão ao Oriente, e centrar minha Vitória querida, por pensamento, claro, como sempre faço, pego ao acaso, um poema na “flauta de jade”
“O luar se derrama, sobre a cama de meu quarto
Parece a geada!Ergo a cabeça, vejo a lua,
E lembro saudoso a cidade em que nasci.”
Imagino-me saindo do Politeama, da sessão colosso das segundas-feiras, em noite de luar pleno. Atravesso a Av. da República e entro no Café Teixeira para a clássica média, com pão e manteiga.Um alentado pão, talvez da Padaria Sarlo, já fechada a aquela hora, com manteiga mesmo, e não as “hodiernas” ou melhor odiadas margarinas atuais. Já na rua, esgueiro-me subindo a Rua Henrique Valadão, em direção ao Cais de S.Francisco. Silencio e calma, só interrompidos, vez em quando bruscamente, pela gataria em seus notívagos, escandalosos e ruidosos coitos somados ao ruído das perseguições às fêmeas sobre telhado de zinco.
Lembro-me da peça de Tenesse Willians, só que o calor das folhas de zinco já estava amainada àquela hora. Adiante em frente à casa dos Machados, sobe do jardim o doce aroma de uma dama-da-noite. Subo a ladeira do Caramuru, passo sob o viaduto e ganho o fim da ladeira, já no Largo. Olho para a direita e vejo o sobradão da Tinturaria imerso na sombra noturna e a porta que susteve aquele ferro em mim arremessado. Seus habitantes dormem àquela hora, o sono justo dos trabalhadores cansados da labuta diurna. Sonham talvez com os dias de mocidade nas ruas de Soochow, ou Cantão talvez, e quem sabem sonham retornar ao País de origem. A lua é um disco luminoso no céu. Estranho! A luz do luar na terra em que nascemos assume uma luz diferente e, no entanto e a mesma em outros lugares.
Monologo com a minha sombra, projetada no calçamento precário. Não tenho com quem conversar na rua erma e vazia. Digo-lhe que tudo que me cerca é familiar. Sobrados, casas, postes de iluminação, árvores. O luar reflete o aço reluzente dos trilhos de bondes, e espelha-se nos vidros das janelas enquanto ando, sem pressa. Dobro a esquerda e o flamboyant, sentinela de minha rua, lá está, altaneiro, galhos projetando no chão a sombra de sua imensa copa. Subo a curta rua.Galos confusos com a intensa claridade cantam fora do fuso horário da madrugada, ainda longe de acontecer.
A luz mortiça do poste, junto à entrada do portão de minha casa, não seria necessária. O jardim e o pomar estão banhados de luz. Um tardio vaga-lume risca o espaço.
- Como é bom voltar para casa de vez em quando, mesmo que seja em sonhos. Dormirei lá esta noite. Amanhã bem cedo, irei à Tinturaria sem sustos ou medo. Procurarei aquele chinês a quem ofendi, para as minhas desculpas. Estou certo que ele compreenderá o meu gesto amigo. Acho que se expressará, em um português entendível dada a longa permanência em minha terra e, quem sabe... Falará comigo sobre Chuang-tsé, Mencius ou Confúcio, aqui não abordados, e se letrado for lerá para mim os “Seis capítulos de uma vida errante”, ou então discorrerá sobre a saga de Meng-Chiang, a esposa Imortal.