As origens
Naquele quente verão de 40, meu pai ao chegar em casa para jantar falou à minha mãe:
- Acho que encontrei uma “brecha” para encaixar o João onde atualmente trabalho.
Meu pai encontrava-se em licença não remunerada como funcionário estadual atuando na Cia Brasileira de Mineração e Siderurgia, embrião da futura Cia do Vale do Rio Doce. Era um eclético na prancheta. Eu estava com 19 anos vivendo ao seu lado e mais tarde colega de trabalho, podia aferir com segurança à diversidade de sua atividade, nas mais variadas formas de manifestação. Ia do Urbanismo à Estatística, da Ilustração à Arquitetura e no momento atuava em desenhos topográficos para a novel Estrada de Ferro Vitória-Minas, ajudando a prepará-la para o tráfego pesado no escoamento pelo porto de Vitória, do minério de Itabira. Isto me causava espanto, admiração e orgulho.
Era inteligente sem dúvida, pois estava para tão largos conhecimentos, escudado em uma escolaridade precária 3º ou 4º ano primário talvez, para executar trabalhos que além da habilidade manual, exigiam uma formação secundária ou acadêmica.
Era o “morgado” de uma família composta de 5 irmãos. Naqueles tempos, as famílias eram numerosas. Nem pensar em planejamento familiar, causa creio eu, da presente fragilidade das uniões, não duradouras e efêmeras.
As uniões estáveis do passado vinham ao encontro da máxima Teosófica que estabelecem à diversidade dentro da unidade tangenciando a harmonia dos contrários, princípios básicos da tolerância mútua agregadora e não dispersiva. Limitação de filhos? Nem pensar, deixem isto para a China, Japão, Índia, mas não em um Brasil ainda hoje carente do preenchimento dos espaços físicos em termos demográficos. Comento somente os fatores morais e sociais em termos de comparação. Nego-me terminantemente a comentar os fatores políticos e econômicos. Estou em estado de graça, revendo memórias gratificantes de minha vida, traçando um perfil dos que me precederam para não me ver tolhido, na teia de espanto e perplexidade com que encaro hoje a condução dos destinos de meu País. As dificuldades de vida do meu sofrido povo vinham de longa data quanto às incertezas econômicas.
Se escrevesse com “la sinistra” destro que sou, à direita, como posição política, estaria cerrada, crispada talvez em protesto mudo, mas eloqüente, conta os privilégios conquistados e escudados por demagogos baratos, empulhadores dos direitos e conquistas sociais. Raras são as exceções, lastimavelmente.
Por isso, volto a contemplar a fisionomia serena, proba, justa e correta de meu pai. Tinha amigos, no “grand mond” vitoriense da época. Governadores Secretários de Estado, Juristas, Desembargadores, Jornalistas e outros com projeção social. Não os procurava. Não por orgulho ou presunção, mas para que não confundissem amizade com adulação ou servilismo. Sentia-se feliz com a “arraia miúda” do Mercado da Capixaba ou Vila Rubim, entre vendedores ambulantes, catraieiros, pescadores, a gente simples que, anonimamente deram a sua contribuição no labor constante para a minha Vitória de hoje, tão bela quando os dias de minha mocidade, e da maturidade de meu pai.
Se político fosse e quisesse enganaria facilmente o eleitorado nas promessas fugazes dos palanques. Atributos não lhe faltariam, senão a eloqüência por timidez talvez! Tinha um encanto pessoal cativante.
Ídolo esportivo, campeão da cidade e Estadual várias vezes pelo seu querido Rio Branco, goleiro da seleção capixaba, artista plástico, reconhecido por onde passasse com inumeráveis amigos.
Mas pergunto! Como conciliar os princípios norteadores da ética e da moral com atributos políticos sem feri-las? Esta ética de comportamento era acrescida pelos atributos inerentes ao artista cujo fulcro é a estética pilar fundamental da harmonia na ansiada e constante procura da perfeição das formas. Era um artista, havia pureza nas intenções de seus atos.
Felizmente, meu pai, espelho meu, não desceu à planície se não para comungar com os simples e humildes e partilhar com eles somente sorrisos e saudações.
Não era um homem alegre, uma tragédia privou-o aos 12 anos de idade do convívio de sua adorada mãe, minha avó paterna. O álbum de família retrata-a aos 32 anos, prenhe de energia e saúde e o acontecimento transmitiu ao meu pai e refletia nele, tudo que ia n’alma pela melancolia refletida em seus olhos.
Católica fervorosa tinha assistido missa e comungado na igreja de São Gonçalo, dia de Santo Antônio. Corria o ano de 1913. Na noite do mesmo dia 14, jazia morta em um incêndio que abalou a pacata Vitória daqueles tempos, sem corpo de bombeiros. Situava-se a loja de fogos de artifícios do meu avô, a Rua Jerônimo Monteiro nº55, mais ou menos à altura da ladeira Cerqueira Lima. Segundo relatos, um freguês soltava rojões em frente. Ao refutamento de um pavio à incandescência entrou na loja e disse:
-Aldomiro, este não acendeu!
E, aliando a palavra ao gesto, bateu o artefato várias vezes no balcão estourando-o dentro da loja e provocando o incêndio. Próxima ao mar, cujas águas seriam o único recurso disponível para tentar um combate às chamas, a população acorreu, solícita, em ajuda.
Associo à cena trágica, a aqueles corredores humanos formados, que vi em alguns “Westerns” onde os recipientes eram passados freneticamente de mão em mão em direção ao foco ígneo, mas, a água retirada do mar não foi suficiente e em tempo hábil para o combate às chamas, dado ao material altamente inflamável, se não para o rescaldo posterior, consumada a tragédia.
No negrume da noite, o mar qual espelho aterrador refletia em variados graus de intensidade luminosa entre estampidos, a luz dos foguetões que riscavam o escuro céu em parábolas várias ascendentes em maior brilho, até o bruxulear no descenso terminada a carga propulsora. Ela já estava posta a salvo, mas desesperada não vendo o caçula Clovis* penetrou nas chamas à sua procura. Foi encontrada na manhã seguinte, sob os escombros. Na parte superior do prédio, funcionava a delegacia de Polícia. Soldados e carcereiro fugiram apavorados e três detentos foram os companheiros de infortúnio de minha avó.
Meu avô, oriundo do Sergipe, desembarcara em Vitória, com toda a “entourage” nortista, pais, irmãos para tentar a vida longe dos “pagos”. Vieram em um daqueles Itas de saudosa memória. Às vezes, dois ou três deles estavam simultaneamente no porto ora vindos do Norte ou a ele demandando vindos do Sul do País.
Misturavam-se as embarcações de maior porte, cargueiros e navios de bandeiras várias, todos fundeados ao largo, pois o cais ainda não tinha “nascido” ao meu tempo. A rebocadores, pranchões, fragatas e saveiros somavam-se a numerosa catraia com barcos multicoloridos no cais da Praça Oito, ruidosa, no vozerio incessante de solicitação pela preferência no transporte de passageiros em suas embarcações. Alguns concorrentes da lancha que demandava o Paul fronteiriço atracavam nas pedras em um precário desembarcadouro ao lado daquele ponto inicial da encantadora viagem de bondes para Vila Velha. Outras demandavam um ponto em frente ao morro de Argolas cujo acesso se dava por uma precária escada de madeira apoiada no flanco rochoso, para subida do morro. Outras se dirigiam à gare da Leopoldina ou ao “píer” da estação São Carlos da estrada Vitória-Minas. Estes trajetos eram mais longos adentrando a baía em diagonal com percursos maiores justificando uma escalada de preços.
Do Sto. Antônio e das ilhas Caieiras vinham canoas trazendo os camarões lameirões cinza e do canal da barra voltavam outras com os deliciosos siris açus pescados atrás do Penedo, outras portando siris e caranguejos colhidos nos fartos manguezais em cuja viajem de volta eram tangidas suas velas brancas pelo fresco e generoso Nordeste que soprava na segunda metade da manhã. As traineiras de maior porte com suas velas alaranjadas da colônia de pesca Z5 sediada no Suá regressavam mais tarde. Portugueses em sua maioria portando calças cinzas baratas dobradas até os joelhos, pés nus ou atamancados, bonés do mesmo tecido das camisas de pano grosso, pele curtida e escurecida pelas condições mesológicas, baixo um sol inclemente, mãos calosas pelo ofício rude de lançamento e recolhimento das redes e de anzóis quando da pesca individual traziam o pescado d’alto mar para o mercado da Capixaba.
Pela manhã, barcos desportivos do Álvares ou Saldanha davam ao Porto, aquela movimentação festiva. Era um ir e vir nas mais variadas direções e as batidas dos remos n’água se somava aos alegres apitos dos que chegavam mais parecendo noivos do que navios para as núpcias passageiras enquanto durasse a permanência com aquela noiva encantadora em cujo regaço descansavam durante dias ou semanas de descarga ou carregamento lançando com estardalhaço festivo as suas âncoras, em contraste com o recolhimento lento e lúgubre das mesmas, o arrastar emitindo gemidos férreos no atrito das correntes contra as proas como a sugerir lamentos de despedidas, sobretudo à luz crepuscular que emoldurava o Moxuara, sentinela de fundo, daquele cenário magnificente.
Volto ao meu avô. Depois de perder a esposa, casou-se em 2ª Núpcias com dona Nenen. Como poderia criar cinco filhos menores sem assistência de uma companheira? Dona Nenen era do ramo dos Setúbal, lá para os lados do morro do Agá, perto de Benevente (hoje, Anchieta). Irmã de dona Loura casada com o poeta Teixeira Leite que ao lado de Ciro Vieira da Cunha, José Luís Hollsmeister, Jair Amorin, Elmo Zamprogno, Alvimar Silva entre muitos outros encantavam com seus versos as sonetinas e alexandrinas da época, publicando nas edições dominicais do Diário da Manhã, jóias do estro Capixaba, ao lado das “efemérides” título pomposo de fatos e datas por sua importância na vida citadina ou do Estado. Na mesma página, os registros sociais que deram o pontapé inicial às modernas colunas de hoje.
Para recomeçar a vida, abandonou o fabrico de fogos, pediu 15 contos de réis ao meu avô materno, uma pequena fortuna naquela época e estabeleceu-se como perfumista. Inicialmente na Av. Capixaba, próximo ao mercado. Mudou-se para a esquina da ladeira Maria Ortiz com a Rua Nestor Gomes, em pleno centro comercial, e mais tarde na própria Nestor Gomes nº5, se não me falha a memória.
Lá, minhas visitas ao velho eram mais freqüentes. Chamava-se Perfumaria “Flor d’América” que marcou época, estabelecendo com a Coty, Beija-Flor e outras congêneres do Rio uma concorrência na praça da Vitória por sua habilidade comercial e, sobretudo pelo esmerado acabamento de seus produtos, com apresentação vistosa e elegante. Só usava vidros raros ou de cristal nas formas mais variadas para o conteúdo de extratos e loções com rotulagem dourada em relevo. Alguns portavam fitas de seda nas mais variadas cores com arremates no gargalo. Eram vendidas em estojos executados manualmente com apuro e esmero. Alguns eram condicionados em veludo carmesim, verde escuro, azul marinho, ou cinza com “cordonets” de seda pura no fechamento, portando gravações douradas ou prateadas, tampões de vidro com “sticks” mergulhados no conteúdo que eram passados no dorso das mãos das freguesas e fregueses, as primeiras em maior número de freqüentadores.
Os desenhos e molduras seguiam aquela passagem do clássico para a “art noveau” estilo dominante no início do século passado que imperou até a década de 40. As essências eram importadas da França, capital da moda do mundo ocidental, e não sofriam as adulterações “made in cascadure” comum em nossos dias. Misturou, em percentuais que só ele conhecia essências de Chipre e Rose, a que batizou de “Chiprosa”. Estratos e loções que marcaram época. Os balcões e armários de peroba clara, tampos e laterais de vidro para a amostragem ampla de seus produtos. Duas cortinas: uma para o pequeno escritório e outra dava acesso ao laboratório de manipulação. No primeiro, imperava uma reluzente “Remigton” ao lado de livros de contabilidade em que ele cotidianamente punha suas anotações. Caixas de estampilhas para as notas fiscais e recibos, papéis de cores várias e cartonagem cuidadosamente empilhados, uma prensa de 30x30cm de campo encimada pela rosca de prensagem e a escrivaninha onde com impecável caligrafia tomava suas notas.
No laboratório, potes de vaselina sólida e líquida purificadas, óleos perfumados e álcool de cereais. Gomalinas que os “dandies” da época aplicavam no cabelo que se transformavam em um tapete sólido e reluzente, tirando a individualidade dos fios. Retortas, filtros em variados tamanhos de vidro espesso encimados por filtros de papel para a apuração lenta da transparência dos produtos. Fabricava talcos e pós de arroz. Um sabão em pó para barbeiros conquistou os profissionais citadinos e do interior do estado e de cidades de Minas, e no Sul até Campos chegavam encomendas.
Era baixo como soe ser os nordestinos. Um grande sinal escuro e saliente junto à base do nariz, olho pretos, perscrutadores com um nevo no olho direito emoldurado por óculos de aro de tartaruga para miopia não acentuada. Nervoso e agitado, parecia querer dar conta de duas à três tarefas ao mesmo tempo. Vestia-se com apuro. No verão, os ternos de linho S120 e alvas camisas de cambraia. No inverno casimira inglesa. Gravatas francesas com um pequeno rubi espetado. Meias de seda em sapatos da sapataria Fox em cromo alemão ou verniz reluzente. Algumas vezes, as elegantes polainas com base de verniz e camurça cinza abotoadas lateralmente. Cabelos curtos, bem penteados, barba sempre bem-feita, um bigode ralo, impecavelmente limpo, perfumado, mãos finas, delicadas, e unhas sempre tratadas.
Imagino as “conversas” com as manicures da época. Na loja, dona Nenen estava sempre presente. Apesar do nome não portava a ingenuidade das crianças de berço. Não confiava na “peça” porque ele insistia no atendimento pessoal das freguesas, apesar de ter balconista, com olhares marotos e sussurros inaudíveis para desespero da consorte. E ela tinha suas razões. Na confluência da Nestor Gomes com a Ladeira Maria Ortiz que descia para a Praça 8, setenta metros se tanto do estabelecimento começava a rua Duque de Caxias em homenagem ao patrono do exército, mas em Vitória, em seus sobradões, na vanguarda dos pelotões, as “meninas da profissão milenar” tinham estabelecido o seu quartel general com filial na rua General Osório e eram costumeiras e assíduas freqüentadoras da Perfumaria de “Seu Pinto”. Já rapaz, não sei se por brincadeira da minha turma, fui barrado certa noite no topo de uma escada e dar um tempo, isto é, mais umas voltas na Praça da Independência para evitar um confronto de gerações. Minhas irmãs reclamavam dele mais carinho e visitas mais freqüentes, já que vivia com os filhos de Dona Loura, e parecia dedicar mais atenção à prole de Teixeira Leite. Isso não procedia. Era seu feitio. Ademais tínhamos o nosso feudo familiar mais chegado ao avô materno com o qual residíamos. Contudo, podíamos contar com duas visitas mensais à rua do Cruzeiro, portando para nós, pacotes de rebuçados de Lisboa, pêras, maçãs e uvas californianas, compradas na Confeitaria Globo, símile estadual da famosa Colombo do Rio, guardada às devidas proporções com garçons solícitos, ponto de encontro da granfinagem capixaba na Praça oito. Vinha pagar prestações do empréstimo feito a meu avô materno. Demorava-se pouco. Um dedo de prosa com minha mãe, pai e avó, a consulta no relógio de algibeira saía com seus passos curtos e apressados. As manhãs de domingo, após a leitura dos jornais, concedia-se ao grande prazer de ouvir música. E que gosto apurado! Vitrola manual, mudança cuidadosa de agulhas os 78 rpm desfilavam. Trechos de óperas e operetas, valsas de Strauss e Franz Lehar, Ketelbi, entre outros, cujas passagens ou trechos mais conhecidos eram assobiados baixo, quando em trabalho. De onde viera essas predileções refinadas, o mistério de conhecer pirotecnia, a caligrafia invejável, sem base curricular para um nordestino do Siriri, pequena aldeia próxima a Lagarto, no Sergipe, o faro comercial, senão a grande vontade de aprender. Muitas vezes eu o encontrava no Mercado da capixaba pela alvorada. Ele, fazendo as compras, eu e meu pai atrás de iscas para pescar. Feita às compras, ia trabalhar esperando a hora de abrir a loja às 8:00. Quantas vezes já rapaz, após as voltas na Praça da Independência na “paquera” subia a Nestor Gomes. Havia luz, ouvia o tintilar das teclas da Remigton atestando sua presença. Quando se aposentou, acabou a Perfumaria. Ela não podia existir sem seu dono e criador. Teve convites para a gerência da Coty e Beija-Flor no Rio. Adrianino Maurício o convidou para trabalhar em sua fábrica de fogos em Rodeio, no estado do Rio. Rejeitou-os. Apegara-se à Vitória, adotada como terra natal, berço de seus filhos e netos. Não conseguia ficar parado. Por ocasião dos festejos juninos, distribuía entre a parentada a tarefa de executar para ele fogos de pequeno porte para distrair-se e ganhar alguns trocados. Em 1950 fui trabalhar em Belo Horizonte. Lá o encontrei a passeio. Foi a última vez que o vi. Quando já no Rio em 51 tive notícia de sua morte em Vitória. O lado nordestino de meu pai despediu-se da vida. Com tudo, acredito que o legado que transmitiu ao meu pai e a mim como descendentes foi o apurado gosto artístico por tudo que executava. Vinha dele sem dúvida, a herança que nos legou. Aquele filho de um neocristão, perdido no Sertão do Sergipe, quem sabe, a pequena gota de sangue judaico ligou-nos atavicamente as Artes que é sem dúvida a eterna procura e pesquisa do conteúdo e forma.
Minhas raízes maternas têm origens em Portugal. Meu avô devia portar nas veias o sangue quente, guerreiro, aventureiro, dos árabes que dominaram a península Ibérica. Era natural, de Castro D’aire uma antiga fortaleza romana no distrito de Viseu ao norte do País. Segundo relatos de minha mãe as circunstâncias de sua vinda para o Brasil têm conotações dramáticas, tangenciando a tragédia. Contrariamente a outros países europeus onde o duelo a bala o a espada era a forma de reparação às desfeitas, curiosamente, em Portugal era a aquele tempo, os duelos a vara de marmelo. Em uma daquelas “quermesses” domingueiras, onde o generoso vinho corria solto, esquentando os ânimos, meu avô, na flor de seus 18 anos, foi envolvido em um duelo à moda portuguesa. Levou a melhor na contenda. “A porretada marmélica” atingiu a cabeça do oponente, prostando-o, ensangüentado ao solo. Julgando-o morto, pais e parentes na mesma noite, despacharam meu avô para a casa de parentes no Porto mantendo-o escondido, até a partida de um navio para o Brasil. Embarcou para nossa terra chegando ao Rio de Janeiro, indo viver com seu irmão, tio Constantino que o precedera.
Notícias chegaram da santa terrinha dando conta do restabelecimento do contendor. Tarde demais, já tinha atravessado o Atlântico. O remédio era começar nova vida na terra da adoção. Vida esta coroada de operosidade, dinamismo para alcançar um status social conseguido através do labor duro, constante e infatigável. Ficou algum tempo no Rio de Janeiro, rumando para o nosso Estado mais precisamente para Cachoeiro do Itapemirim para trabalhar como cavoqueiro, trabalhador braçal de Leopoldina Railway. Progredindo, fundou sua própria firma de construções. A Leopoldina agora era sua cliente. Construiu as estações de Alegre e Espera Feliz e trechos da ferrovia inglesa. Prosperou. Fez política, estabelecendo fortes amizades. Torna-se amigo íntimo de Nestor Gomes, oriundo de Itabapoama e a maior liderança política do sul do Estado. Ao sair de Cachoeiro, para residir em Vitória em 1917, tem naquela cidade 16 casas rendendo aluguéis construída com seu trabalho intenso. A família já estava formada com nove filhos. Em Vitória, um ano após leva ma primeira porretada marmélica do destino. Seu filho “Zeca”, José (tio que não conheci) pai do vice-reitor da UFES, Léo de Souza Ribeiro, recentemente falecido, apaixona-se por uma das freqüentadoras do famoso quartel general das meninas da rua Duque de Caxias. Meu avô interfere, aconselha-o a abandonar a aventura amorosa. Quanto à mulher, procura-a, oferece uma boa soma para voltar à Bahia de onde era natural. Em vão. Alguns tiros ecoam no topo da escadaria Maria Ortiz. Meu tio atira na mulher numa discussão de rua. Julgando-a morta atingida, suicida-se com um tiro na cabeça. Morre dois dias após na Santa Casa de Misericórdia. Ela se restabelece. Um ano após compra um terreno em uma rua sem saída, rua do Cruzeiro atrás do lendário convento de São Francisco. Saída tinha, mas me reservo o direito de descrever mais tarde a ladeira da Tapéra que descia para o cais de São Francisco, atravessando a Dom Fernando, quando comentar a Vitória do meu tempo. A rua do Cruzeiro é a atual Adão Benezath, no contraforte sul do convento.
Ali construiria a nossa casa que seria a minha Vitória intramuros em um recanto bucólico e saudável. Segundo minha mãe na abertura das cavas, para as fundações eram evidentes os sinais do campo santo, do antigo cemitério do convento face o ossário recolhido. Nasci sobre um antigo cemitério. O terreno em declive para a praça do quartel com um embasamento alto proporcionaria dois andares nos fundos. O arcabouço externo em pedras rejuntadas com 40 cm de espessura era a base para encimar paredes de tijolos maciços de vez e meia de espessura com 25 cm. Vigas de madeira sustentavam o piso de tábua corrida. O telhado com tesouras e estrutura em massaranduba, forro em frisos completava o conjunto com ausência completa de concreto. Para quê? Aquilo era uma fortaleza, sólida a toda prova.
Não tinha um estilo definido, talvez um néo-clássico maroto, mas era ampla e confortável. Da rua até a varanda um longo passadiço cimentado com cerca de 22 m de comprimento até as escadas da vasta varanda. Cinco degraus para seu piso de cerâmica importada. Quem entrasse, passava por um portão de ferro trabalhado sob um arco pleno de alvenaria. À direita um jardim em formas geométricas nos canteiros. À esquerda duas frondosas mangueiras, abacateiro, e um pé de graviola plantado por meu avô. O jardim inicialmente aos cuidados de um belga Seu Jacques que dormia no porão habitável onde guardava as ferramentas de jardinagem. Meu avô o tratava com carinho. Que diabos esse súdito do Rei Leopoldo fui fazer em Vitória tão longe de sua terra natal? Emigrara após a guerra de 1914? Nunca o soube. Após sua morte, minha mãe herdou a jardinagem. Roseiras, girassóis, dálias, violetas, e jasmins estavam sempre floridos. Na varanda, duas portas com uma janela de entremeio. Uma dava acesso para a sala de visitas e a outra a vasta sala de jantar. Cinco quartos, copa, cozinha e banheiro, um puxado lateral com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Na loja: dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Vinte e uma peças, coisa mesmo de português. Isto a parte construída e mais 600 m² de área livre. Como disse, ela era minha Vitória intramuros. Abrir o portão e ganhar a rua era ganhar minha Vitória extramuros, cheia de graça venturosa, um sorriso de luz.
Nesse mesmo ano, a casa estava pronta, apesar do meu avô estar trabalhando em duas frentes. Construindo a nossa casa e fazendo campanha política para o dileto amigo Dr. Nestor Gomes. Para regozijo dos adeptos e correligionários entre eles meu avô, seu amigo é eleito Presidente do Estado para o quadriênio 1920-24. Sua eleição foi contestada pelos oponentes alegando inelegibilidade sob o fundamento de Nestor Gomes possuir ações da concessão da E. de Ferro Itabapoama.
Reto, probo e acima de tudo honesto, tinha quando candidato transferido para Manoel Peralva suas ações da Ferrovia, desencompatibilizando do preceito constitucional.
A decisão veio para o Rio, foi parar no Congresso Nacional e o caso entregue ao grande jurista Afrânio de Mello Franco que reconheceu a legitimidade do pleito e finalmente Nestor Gomes foi empossado. A posse foi tumultuada com tiroteios pelas ruas, mormente em frente ao Congresso fronteiriço ao Palácio do Governo atestando a inconformidade dos adversários.
- Mocinha, passe-me o revólver! Era um Colt prateado a sua arma. Mocinha era como ele chamava minha mãe em seu primeiro ano de casada, que daria a luz a este escriba um ano após “desentocado” pela lendária mamãe Augusta, a querida parteira. Meu pai naquele ano, (1920) com 19 anos torna-se campeão da cidade pelo seu querido Rio Branco.
Com o revólver na cinta, meu avô com outros amigos dormiram duas noites no palácio do governo até o serenar dos ânimos. Claro que o que narrei até aqui me servi em sua totalidade no relato de meus pais, mormente de minha mãe. São fatos que antecederam minha chegada ao mundo. Mamãe Augusta desentocou sete filhos de Seu Aldomário e fomos os netos mais queridos do senhor Manoel Rodrigues Ribeiro já que eram filhos de sua única filha mulher, e vivíamos sob o mesmo teto, Minhas recordações são muito precoces. Até os três anos de idade nada poderia acrescentar cercado do carinho e do amor na vida vegetativa dos bebês, mas, os olhos já estavam abertos para o mundo dos quatro anos em diante. Hoje à distância do tempo em vez de obliterar a memória, mais aclara as lembranças dos fatos que participei. Aprendi a viver uma intensa vida interior desde a mais tenra idade. Entregar-se aos seus próprios pensamentos foi e é para mim um exercício profundamente agradável. Participava da vida da casa, das brincadeiras com meus irmãos, mas tinha os meus momentos, só meus. Em 23, nasceu Fernando; em 24, Carlos; em 26, Laura neta mulher que o meu avô adorava; em 28, Aldo. Lila, em 32 e Maria Helena, em 36. Não tiveram a ventura de conhecê-lo senão através de um retrato na parede. Uma de suas brincadeiras preferidas era aparecer na varanda, portal da casa onde estávamos, eu, Fernando e Carlos e, correr atrás dos três gritando com a chave do cofre a guisa de canivete.
Vou te capar, moleque! E quando encurralava uma das vítimas apavorada, escondendo com as mãos as partes pubentas, temerosa da execução, ria com desenvoltura e a elevava nos braços para um beijo carinhoso. Classe média alta era pródigo em vestir-nos com apuro. Roupa der linho e casimira inglesa com sapatos finos. Comprou no Rio para os netos uniformes da Marinha com bonés, marinheiros do São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Os três encouraçados da marinha brasileira a época. Os pruridos nacionalistas chegaram cedo à nossa casa, antes da eclosão do movimento tenentista de 1930. Ademais minha mãe era sua tesoureira, sacava o que quisesse para os filhos. Aquela chave da “capação” vivia em suas mãos inclusive para a manutenção da casa e os pagamentos semanais a seus numerosos empregados das obras, quer do Estado, ou particulares. Aos sábados o passadiço do jardim até a janela da varanda que funcionava como “guichê” enchia daquela gente humilde, a maioria vinda dos bairros mais pobres; Vila Rubim, Caratoira, Santo Antônio para receber o soldo semanal.
Havia aquele vozerio alto à distância, mas do aproximar-se da varanda, conversavam baixo e tornavam-se silentes ao receber o numerário. Aquele desfile ia até ao meio dia tomando toda a manhã. Conhecia alguns deles; Tangerino, o italiano; o pedreiro Gélio, cuja mulher Maria fora minha babá e, sobretudo o Zezito, mais preto que a asa da graúna, (com licença de José de Alencar, pela comparação) que era extremamente gago, o que divertia o meu avô.
Piscava o olho para minha mãe, chamava-a a sala de visitas contígua, inquira-o de alguma falta inventada na hora e se divertia vendo o Zezito justificar-se com embaraço de fala cada vez maior, crispando o chapéu na mão nervosamente.
- Que aquilo não se repetisse novamente! Acrescentava
- Som, sim sinhô Seu... Seu... Ri...Ri... beiro!
E lá ia o Zezito para casa na Vila Rubim. Aos nove ou dez anos fui várias vezes visitá-lo junto a sua família simples e humilde. E tinha sempre em regalo para o neto do patrão.
Meu avô interessava-se pelos empregados e suas famílias. Na doença, as providências médicas ou internação. No acréscimo familiar, roupa e agasalhos. Isto ficava por conta da tesoureira. Uma bonificação no Natal embora naquele tempo não houvesse 13º. Era adorado por eles como se fosse um pequeno Deus. Como lazer, tinha duas paixões. A primeira era quase todas as noites ir ao cinema. Comprava da firma Santos & Cia um permanente anual para as sessões noturnas. Quantas vezes eu o vi voltando para a casa de braço com a minha mãe, tão cinéfila quanto ele. A Segunda eram as dominicais partidas de dominó. As duplas eram invariavelmente a mesma. Ele, seu Domingos “português”, bombeiro hidráulico, morador ali perto do viaduto sobre a rua Caramuru, seu Augusto Rodrigues, vizinho de portão, e seu Vicente Salgueiro pai de Consuelo Salgueiro, morador na praça do Quartel.
Das 14:00 as 21:00h à vontade de pijama e chinelos meu avô os recebia aos domingos na ampla varanda após o ajantarado.
As partidas se sucediam, e as peças eram batidas na mesa com estardalhaços de maneira mais forte quando na convicção do jogador fechando a jogada e o ruído para o embaralhar para a partida seguinte. Só paravam para um pequeno lanche trazido por minha mãe ou avó.
Meu avô e seu Vicente fumavam. Fumo Coral para ser feito na hora, o cigarro levando aquele arremate com a saliva ao longo do papel para o fecho final. Seu Vicente era extremamente magro e não tinha arcada dentária. Ao acender o cigarro para os tragos iniciais, as bochechas pareciam se juntar internamente formando duas depressões no rosto magro. Eu esboçava um sorriso, achando graça, vendo aquela cena. Isto ia até as nove da noite com as “gozações” da dupla vencedora. As despedidas amigáveis coroavam aqueles quatro homens em seu regresso aos lares. Tive com meu avô uma encantadora convivência ao longo de sete anos.
Em 1925 levou a segunda porretada marmélica. Não sei o motivo, desentendeu-se com o filho Carlos que morava no andar de baixo.
Ressentido com o pai abandonou Vitória, foi morar em Pirajuí (S.P.).
Já rapaz, minha mãe mostrou-me uma carta sua impregnada da mais profunda saudade da família, dos amigos de sua adorada Vitória.Perguntava por todos, sobretudo como ia o seu querido Rio Branco no campeonato da cidade.
Inesperadamente chega-nos a noticia de sua morte, vítima de angina pectoris.Aquilo caiu como um raio sobre meu avô, ele que desejava ardentemente a volta do filho querido, acima de sua intransigência em ceder. Era meados de 1926.Logo sua saúde declinou.Aconselhado por médicos vai para o Rio.Acompanhei-o com minha avó com quem dormia e não a largava.Lembro-me do Hospital Evangélico, na Tijuca, a Rua Bom Pastor, onde ficou internado e posteriormente operado.Ficamos eu e minha avó, na rua Haddock Lobo ali perto em casa do Sr. Orozimbo, seu amigo.Pareceu restabelecer-se.Engorda um pouco.Mas estranho! Nosso filtro “Fiel” em nossa casa, além dos dois bastões de enxofre, para a purificação da água, ganha a companhia de um objeto inusitado de uns 3cm de comprimento, em um cilindro de vidro, tamponado nas extremidades com metal e um filamento interno ligando-as.Uma unidade radioativa? Não sei! Jamais soube.
Voltou alegre e disposto reencetando suas atividades habituais.
Uma noite a porta do seu quarto semi-aberta, observei meu avô de pijama e meias ajoelhado na cama rezando enfrente a uma reprodução da imagem de N.S. da Penha,que emoldurava a parede da cabeceira.Nada sabia desta devoção.E a força de promessa talvez pelo seu restabelecimento, mandou seus operários pintar o santuário da santa interna e externamente E foi marcado um convescotes em um domingo.Após a Missa, a família e convidados no Campinho sob arvores formaram grupos alegres comendo, bebendo, conversando, batendo fotos para o registro do evento.Isto durou toda à tarde e o regresso só se verificou à noitinha. Pouco tempo depois viajou para o Rio a fim de ver a parentada como sempre fazia, hospedando-se no Hotel Avenida. Eles estavam sediados na Muda, mas precisamente a Rua Rademaker, em uma vasta chácara, pois viviam do cultivo de plantas ornamentais, junto do rio do qual tiravam a água para a rega das plantas. Naqueles tempos, a água era límpida, isenta da poluição dos nossos dias.Ainda hoje remanescentes do núcleo português ainda vivem do mesmo comercio transferindo-se para a Rua Conde de Bonfim, sob as torres da Light em faixa “non edificandi” na encosta do morro da Formiga.
Meu avô oferecia a todos um lauto almoço no hotel, alugava vários táxis e saiam em passeio pela cidade, culminado com a passagem pelo túnel Alaor Prata, para ver o novel bairro que surgia, a atual Copacabana. Instado a comprar lotes naquelas bandas, argumentou que não ia comprar areia.
-Areia só lavada de rio para as minhas obras e sentenciou; o futuro do Rio esta na zona Norte.Comprou uma casa na Penha. Esta casa ficou para o tio Ulisses na posterior partilha de bens. Não culpo meu avo pela falta de instrução dos filhos, censuro, talvez o tio Ullisses, por ser um contador hábil, inteligente.trabalhando na Fazenda com Alziro Vianna e se tornando primeiro contador do Estado, não tivesse se colocado a frente da firma do pai após sua morte e evitado a débâcle financeira que desabou sobre nós. Somente o caçula Luiz graças os esforços de minha avó e nosso, alugando a casa, e indo morar no porão, os alugueres sustentaram seus estudos na Fluminense, onde se tornou tisiólogo, clinicou, viveu e morreu em Niterói.
Meu avo era muito liberal, não se cercava de garantias em seus negócios!
- Mocinha, me da 10 contos de reis!Minha mãe sabia que ele fora “enrolado” na sala de visitas após curta conversa.
- Papai o Sr.nem o conhece! - Nada, é meu velho amigo! Intransigente às vezes sem necessidade, generoso e imprevidente porque aquilo era de sua natureza. Para exemplificar, vale a pena lembrar um episodio. Certa manhã, após o desjejum, de pijama subiu uma pequena elevação que havia em nosso terreno, divisa com o Orfanato Cristo Rei, separada por uma simples cerca de arame.Esperava-o Padre Leandro Del`Uomo. Atendendo uma solicitação do padre, ali mesmo sacou do bolso do pijama 40 notas de Floriano, 20 contos de reis e entregou ao padre. O governo tinha atrasado uma dotação para a sua magnífica obra social e o padre estava em dificuldades.
- Mais sem um recibo! Indagou?
- Não padre.Confio no Sr. E sei que estou lidando com um homem.Realmente padre Leandro era um homem.Dois meses após a cena se repetiu na ordem inversa, O Padre Leandro devolvendo o numerário, que apanhara por empréstimo, sem juros, claro. Assim era “seu” Ribeiro, sempre disposto a ajudar se a causa fosse justa.Cambiava 200 Escudos todos os meses e remetia-os para sua mãe na”Santa Terrinha” . Abdicou a todos os de direitos a herança, quando da sua morte. Quis ir a Portugal a passeio a fim de rever os parentes, dinheiro não era problema.Mas segundo minha mãe uma consulta a uma pitonisa desistiu do projeto, superticioso, diante das revelações.
Lembro-me que brincando no porão de nossa casa, até o Deusch Bank passou-lhe a perna. Refiro-me ao calhamaço de notas de 5.000.000 de marcos que esteve em minhas mãos jogados talvez no monturo das coisas inúteis, dinheiro que a Alemanha jamais honrou. Lembro-me também de uma tarde ate a noitinha um “show” de um grupo de guitarristas e cantores Da Santa Terrinha” na varanda de nossa casa.Os fados rolaram soltos, nostálgicos para deleite do “velho” contente de estar com seus patrícios e ouvir a música de sua terra. De outra feita, abrigou um numeroso grupo de emigrantes cearenses, conterrâneos de sua mulher, arranjando alojamentos no Orfanato com o Padre Leandro, e os alimentando em nossa casa, até conseguirem ocupação na cidade.
Era um homem de boa estatura, rosto oval moreno têmporas largas, cabelos já grisalhos cortados curtos “a escovinha”.Tinha um porte ereto, vestia-se com apuro. Apesar do gênio forte nunca observei, nenhuma alteração, no ambiente doméstico. Minha avó era submissa a aquele português voluntarioso.Em meados de 1928, sua saúde declinou. Eu apesar da pouca idade notava minha mãe preocupada com seu velho pai, algumas vezes via-o andando de um lado parta o outro, as mãos postadas no peito e nas costas como para aliviar as dores, sem gemidos, embora o semblante e a face denotassem o ricto do sofrimento.
No dia 4 de novembro, um domingo se não me falha a memória, entre 11 e 12 horas, ia sentar-se para o almoço. Ao pegar o espaldar da cadeira para sentar-se, caiu pesadamente no chão. Levado para um quarto contíguo, minha mãe aflita providenciou um escalda pés como emergência, nada adiantou. O colapso e a hemorragia interna foram fulminantes. Nossa sala de visitas foi transformada em velório. A notícia correu pela cidade.Vizinhos amigos, o Domingos, Augusto e Vicente Salgueiro, tinham perdido o parceiro das memoráveis partidas de dominó. O filho mais velho Ullisses trouxe amigos do Palácio do Governo onde trabalhava, o caçula Luiz os seus colegas do ginásio do E. Santo. Dr.Nestor Gomes seu dileto amigo e ex-presidente do Estado, Amintas Rabello, Mirabeau Bastos, Danton Bastos. Os que eu pude lembra-me na ocasião e a massa de seus empregados, com familiares entupiu a nossa chácara de gente. Os confrades da Maçonaria Ordem e Progresso compareceram em massa, querido dos companheiros da Loja, não havendo por isso oficio religioso, mas lá estava o Padre Leandro, Padre Feu Rosa, e outros dignitários da Igreja,seus amigos pessoais.Pessoas do “grand monde”Vitoriense, em mistura com a gente simples da Vila Rubim e Santo Antonio, subúrbios onde moravam a totalidade de seus empregados. Eu atordoado não pude atinar o que significava para nós aquela imensa perda e o desacerto financeiro que ia acarretar nos anos posteriores. Olhava absorto meu avô com um lenço sobre o rosto agitado vez em quando por uma suave brisa, e o sol tinindo e a vida lá fora. Era a primeira vez que defrontava com a morte. Ele tinha só 64 anos. Veio a noite e a casa cheia, e o cafezinho para os presentes correu pela madrugada. Os empregados e familiares lá estavam inclusive o Zezito. Entrou silencioso e respeitoso, não era mais provocado pelo patrão para falar, não gaguejava. Chapéu amassado em mãos nervosas chorava copiosamente a perda do patrão. As10 horas, saiu o féretro.O coche fúnebre lá estava no Largo do S.Francisco e mais cinco bondes enfileirados que desceram a Dom Fernando, rumo a necrópole. Ele que vivera a sombra de S.Francisco ia descansar desta vida, no regaço de S.Antonio, o lisboeta, portanto seu patrício. Era uma espécie de volta a “santa terrinha”. Um enclave português naquele subúrbio distante.
O Nordeste corre em minhas veias bilateralmente.Do Siriri; próximo de Lagarto, no Sergipe, a corrente paterna. Do Ceará, nunca pude precisar, em seus limites o lugar certo de nascimento de minha avó materna. Quixeramobim? Crato? Talvez esta última ao que parece segundo minha mãe. A família? Lima Seca? Limaverde? Talvez esta última já que recentemente tive notícias deste tronco familiar na Terra Tabajara. Dona Maria Joana Ribeiro, era impessoal ate em seu nome, fruto em parte da submissão da mulher no Século XIX aos ditames do marido e patrão, ou talvez não se importasse, com a identidade aquele orgulho próprio da individualidade de todos os seres, caráter forjado nas intempéries sofridas baixo as agruras como retirante que a trouxe, fugitiva da seca ao nosso Estado, caminhando a pé, eventualmente no lombo de um cavalo ou burro, em companhia de parentes, naquele ano seco de 1887, até Cachoeiro do Itapemirim no sul do Estado, onde menina de 17 anos, se uniu por casamento ao meu avô, tornando-se mãe de 9 filhos “legítimos”. Os “legítimos” estão destacados para ressaltar sua grandeza de espírito, tolerância, humildade, e seu profundo senso de humanidade.
A impessoalidade comandava seus sentimentos, esforçando para ser útil a todos que a cercavam, sem nada pedir em troca. Eu e meus irmãos nunca a conhecemos pelo nome próprio. Ela sempre foi para nos Vovó Espírita, e Dona Espírita para amigos e vizinhos. Tentarei explicar o cognome. Estabelecera meu avô profunda amizade com o Sr.Longo Baptista Pereira, oriundo de Pirajuí (S.P), padrinho de minha mãe. Além dos laços de profunda amizade, minha avó torna-se mãe de leite de João Batista Pereira, filho de seu Longo estreitando mais a amizade entre as duas famílias.
Daí talvez a conversão de minha avó aos postulados do espiritismo, já que mais tarde em Vitória o Sr. Longo torna-se um dos fundadores da Federação Espírito-santense de Espiritismo que funcionou ou funciona ainda à rua Sete de Setembro, junto a Praça da Independência.
O álbum de família mostra aquele homem, óculos emoldurando um rosto sereno, alva barba, olhar bondoso daqueles convictos dos postulados de Allan Kardec, e ao lado a foto do filho João Batista, já formado em Direito pela faculdade de São Paulo carinhosamente oferecida a minha avó, sua mãe de leite.
De pequeno e frágil aspecto exterior, tinha um interior prenhe de energia e a resistência física dos nordestinos acostumados às condições climáticas hostis que retemperam o espírito a fim de sobrepujar a aparência frágil externa, dispensando empregadas, lavando e cozinhando às vezes rachando lenha para consumo diário, plantando seus pés de guando e batatas doces, debulhando os primeiros na colheita, regando e colhendo hortaliças no fundo do quintal para o consumo da casa, apesar da excelente posição financeira do marido. Minha avó sobreviveu ao meu avô dezesseis anos. Atravessou-os como a matriarca da casa. Sofreu um derrame com paralisia facial que lhe afetou a memória, mesmo assim era comovente vê-la limpando o jardim e abaixar-se apanhando o lixo juntado com a vassoura.
Quando me referi aos seus nove filhos (legítimos) queria registrar o acolhimento em seu seio de dois filhos do meu avô com outra mulher. Ainda em Cachoeiro certa noite meu avô chegou para jantar triste e contrafeito. A mulher tinha morrido e deixado dois filhos menores.
- Ribeiro, era assim que ela o chamava, já soube o que aconteceu! Os seus filhos já tomaram banho, estão alimentados e dormindo naquele quarto dos fundos.E assim a família foi aumentada graças a sua generosidade e desprendimento. O seu Ribeiro não podia ficar sem uma “nega” por fora, atendendo o atavismo pela raça, e era comovente o tio Reinaldo e o Tio João se dirigirem a ela com o mais profundo respeito tomando a mão da Vovó Espírita Para beija-la, pedindo a bênção.Reinaldo Rodrigues Ribeiro, tornou-se Coletor de Impostos do Estado, com uma folha de louvor de serviços prestados, por sua estrema probidade no trato das cousas publicas. Residiu largo tempo no Forte de S.João, também em Santa Teresa, e finou em Alegre. Tio João viveu em Colatina, voltou a Vitória, e torna-se o maior vendedor de máquinas de costura “Singer” em Campos. Finou em Niterói. Esses foram meus queridos tios de pele mais trigueira que os demais. O caçula Luiz era louro de olhos azuis, mas não esqueçamos tão intensos foi o caldeamento de raças na Península Ibérica, e a presença de Celtas no norte de Portugal.
Dos netos não digo que fosse o preferido de minha avó, mas como morgado entregue a seus cuidados à medida que os irmãos iam nascendo. E acabei ficando como companheiro, partilhando a mesma cama, dando-lhe de vez em quando homéricas mijadas, em incontinências noturnas. Não a vi se despedir do mundo. Eu estava em Itabira, trabalhando no Departamento das Minas da Vale do Rio Doce. Consegui um lugar no avião Presidencial, que ia a Vitória, a fim de dar o meu adeus a minha avó. Era um monomotor “Stimsom” de 4 lugares e aventurei-me naquela viagem.Vi Colatina do Alto, ao Sul o Caparaó, daí para diante foi só chuva, até o tempo abrir para chegar a Goiabeiras às 13 horas da tarde. Desci do avião e bancando o Papa beijei o chão de minha terra, e nunca mais voei. Soube mais tarde pelo piloto, que ele tentou descer em Campos, e rumava para S.Mateus, quando o tempo abriu e ele pôde descer em Vitória. Não preciso dizer que o enterro já tinha sido efetuado. Senti não ter dado o meu beijo de despedida na face magra e encovada de minha avó. Fiquei uma semana em Vitória matando as saudades, revendo parentes e amigos. O meu outro lado nordestino tinha partido também, para aquela viagem sem retorno.
Que história linda! Como é bom resgatar nossas raízes. Benção, vô! Te amo!!! Cris
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