Papai

Em 1 de outubro de 1921 nasce João Baptista, natural de Vitória, Espírito Santo. Influenciado pelo pai, se encantou pela arte, tornando-se também um pintor.
Sua trajetória se inicia como desenhista na Vale do Rio Doce em Vitória (1940/1945) , também exercendo o mesmo ofício no extinto IAPETEC no Rio de Janeiro (1946/1982). Aos 36 anos, já vivendo no Rio de Janeiro, resolve cursar uma universidade e entra para ENBA - Escola Nacional de Belas Artes (hoje EBA-UFRJ), onde faz o curso de pintura (1957/1961) e ganha o prêmio maior: a Medalha de Ouro em 1962 - Pós Graduação. Em 1966 ingressa na extinta TV Tupi como cenógrafo, posto que ocupou até 1967. Em 1970 João presta um concurso para professor do SENAC (Marechal Floriano) e ministra aulas no curso de Decoração e Desenho Básico até 1987, quando se aposenta.

Decidi iniciar este blog para meu pai porque tinha um acervo enorme em minha casa, então escaneei tudo, e resolvi dividir sua história e sua vida com os familiares e amigos.

Aproveitei o espaço disponibilizando também vários capítulos do livro que ele escreveu. São relatos da infância e juventude em Vitória que meu pai não conseguiu publicar. Esse livro foi escrito aqui em casa, com a participação minha e de minhas filhas revezando a digitação dos rascunhos, até que um dia ensinamos a ele, que aprendeu também a operar o editor de texto.

Por fim, peço também para quem tiver algum quadro dele ou até mesmo gravura que fotografe e mande para mim, para dividirmos com mais pessoas e ampliarmos seu acervo.


Qualquer coisa click aqui e me envie um e-mail

Livro de memórias

Você pode acessar partes do livro que João escreveu, acima separados por títulos. Livro que retrata a infância e adolescência em Vitória

Os sons e Fefeu

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“Os sons”

Geralmente acordava cedo! A nossa casa encoberta no quadrante leste pela massa arquitetônica do Convento de São Francisco só era atingida pelos raios solares lá para as 10 horas e, somente ao meio-dia o jardim e o pomar explodiam de luz, entregues totalmente à sua plenitude, atingindo o éle invertido da divisa com a Igreja.
            O embasamento de pedras, negro pela patina do tempo era infestado de lagartixas e camaleões que balançavam as cabeças em sinal de aprovação aquecendo-se ao sol pleno.
            A Rua do Cruzeiro terminava em nosso portão. Um arco também pleno encimava o portal de ferro trabalhado.
            O muro junto do paredão de Igreja era coberto por um agressivo caramanchão de unha de gato sob o qual se ouvia os trinados matutinos das cambaxirras, nossos rouxinóis tropicais, somados ao canto de furtivos sabiás e assustados sanhaços à procura de um maturado mamão ou manga esquecidos da colheita ocultam na densa folhagem, enquanto bandos de andorinhas em frente ao adro da igreja chilreavam em alegre algazarra.
            De vez em quando o arrulho compassado das rolinhas vindas da Fonte Grande de passagem pelo morro, demandando o Parque Moscoso à procura de alimento.
            Se minha avó rachasse lenha para o consumo do dia, ouvia-se para os lados da cozinha estalidos das achas de madeira, sobretudo cambarás cuja queima aromatizava a copa cozinha e comida.
            Do quintal dos fundos subia o cacarejar cacofônico das galinhas anunciando ovos novos, ainda mornos da postura recente colhidos para a gemada matutina já que o pão e o leite tinham sido entregues ao raiar do dia.
            De vez em quando uma fresca aragem sacudia os mamoeiros, o abacateiro e as mangueiras pondo a folhagem a dançar em um balé gracioso e, o sussurro acariciante das folhas subia aos meus ouvidos jovens e sensíveis na percepção de sons quase inaudíveis, mas, suavemente percebidos.
            Cons-cons, saíras, caga-sebos, caboclinhas, coleiros e canários da terra espocavam o ar de trinados, cada um no canto característico da espécie, misturando tonalidades variadas, intercaladas pelo solo arrastado e melancólico dos Gaturamos ainda livres do infortúnio das gaiolas.
            Lá em cima, sob um firmamento azul, sem nuvens, bandos de urubus em vôos preguiçosos e circulares, atentos para descer ao arrepio de alguma carniça alcançado pelos olhos perscrutadores e agudos da espécie, via-se alguns gaviões atentos também, ao mais leve descuido de uma presa ao alcance de um vôo descendente, rápido e cortante.
            Á estes sons da natureza através de pássaros e animais somavam-se aos sons citadinos.
            Logo cedo o pregão do padeiro e leiteiro. Logo após, vendedores vários assomavam o portão na oferta ruidosa de suas mercadorias. Vendedores de hortaliças e legumes quais balanças desajeitadas, oscilantes ao ritmo do andar curto e incerto pela mercadoria pesada que pendiam de dois cestos ligados à trava de madeira sustentada pelos ombros. Ou então o moleque arriando o tabuleiro vidrado onde os olhos mais vidrados ainda meus e de irmãos viam espelhados, cús-cús, bolos de arroz, fubá ou trigo, doces de coco alvos como neve, ou queimados, e pés-de-moleque estrelados de amendoins em um campo marrom escuro de açúcar mascavo.
            Vez por outra adentrando o portão até a varanda vinham talvez da Fonte Grande ou Vila Rubim, moçoilas portando salvas de doces de mamão ou abóbora cobertas com um pano alvo, impecavelmente limpo. Batiam palmas e chegavam silentes e envergonhadas na apresentação da mercadoria cuidadosamente cristalizadas, mandadas pelas mães, donas de casa afim da venda acrescentarem algo às finanças domésticas.
            Do Largo do São Francisco de vez em quando uma lâmina de aço atritada contra uma roda pedalada, produzia um som agudo e cortante anunciando a presença do amolador de facas, canivetes e tesouras.
            O bonde descendo a Rua Dom Fernando para a Praça do Quartel, trecho em curva constante até atingi-la emitia um ruído resultante do atrito roda-trilhos e o intercalado soar da campainha pedalada pelo motorneiro alertando desavisados e distraídos transeuntes.
            Às 10:15 em ponto entre o ruído das manobras de composições da Victória a Minas, da Leopoldina chegava o silvo prolongado da partida do Noturno para o Rio de Janeiro, aquela hercúlea maratona férrea de 23 horas de duração. Transeuntes paravam, mãos na algibeira do colete para consultar os Patek-Phillips e ajustar os ponteiros as 10 e ¼. Era um ponto de referência ao atraso para o apronto do almoço às 11:00 a garotada chamada para o banho e o patrão à mesa àquela hora. Entrada no colégio às 12:00 para os primeiros e o patrão chegando a hora certa para o ponto na repartição pública. Britânicamente.
            A hora do almoço os sons interiorizavam-se centrados na azáfama doméstica. Tinir de pratos e talheres, a imprecação carinhosa da empregada aos arteiros da casa ou o seu canto enquanto passava a roupa após o almoço.
            Do quarto de costura o matraquear da Singer de minha mãe cantava na tarde quente e ensolarada. Do quartel de polícia subia até nós o ensaio diário de sua magnífica banda. Ora os acordes da protofonia do “O Guarani” ou do “Lo Schiavo” de Carlos Gomes, valsas de Strauss, ou alguns dobrados militares em meio à toques de corneta, ordem unida no pátio interno aos exercícios da tropa ou do Corpo de Bombeiros ali sediado.
            O morro do São Francisco na encosta que descia para o quartel pululava de rochas soltas. Vitória era uma cidade “paralelepipizada” como outras antes do advento do asfalto.
            Necessário se tornava o granito para a pavimentação das ruas. De manhã até as 5 horas da tarde, hora do “fogacho” a dinamite era um tinir monótono de marteladas compassadas na esteira dos furos enfileirados para a introdução em um deles da carga detonadora. Ás 4 a passarada retomava a cantoria passadas as horas de maior calor, abrandadas pelo fresco nordeste. O sol se punha atrás do Moscoso, lançando réstias de luz fulgurante em diagonal refletida na ondulação das folhas das bananeiras plantadas quase no limite do divisor de águas e a sombra do morro assomava paulatinamente a Praça do Quartel. Postado em uma das janelas do lado oeste, via a tarde declinar e a chegada da noite em um parapeito ainda quente do sol. Um bonde descia a Dom Fernando, cruzava a praça demandando Vila Rubim, Caratoíra até o Santo Antônio, o que proporcionaria sem dúvida a seus passageiros, o espetáculo do sol morrente, ainda envolvendo em uma poeira dourada e evanescente os flancos do Morro do Úna e do Moxuara esbatidos pela distância no resto de luz ainda pendente no ar antes das sombras da noite se adensarem, numa fantástica sinfonia de cigarras. No quarto de costura a Singer de minha mãe emudecia. A Singer era ela própria, as sombras se adensando e minha mãe cantando enquanto a noite descia:
                                               “Cai a tarde, tristonha e serena,
                                               num suave e macio langor,
                                               despertando em meu coração,
                                               as saudades do primeiro amor, etc.”
Subia então do porto os apitos compassados e nostálgicos da despedida de algum navio que partia pejado de café e madeira para plagas distantes. Do fundo do quintal ouvia-se o piado da cria momentaneamente separado da mãe. De repente corria e se metia, ou melhor, sumia em baixo de um tapete de penas mornas e macias em meio ao cochicho baixo da criação disputando espaços nos poleiros. Quanta vez me vi perdido, coração batendo forte, indefeso como aquele pinto. Avistando-a, corria para seus braços e o coração aquietava naquele regaço, amplo oceano de tranqüilidade. Luziam as primeiras estrelas e a elas somavam-se miríades de vaga-lumes que invadiam o pomar e o jardim, como se a abóbada celeste descesse ao alcance de nossas mãos.
            A luz central da varanda atraía insetos vários, besouros enormes, negros, chifrudos transformados em bois de carga arrastando no piso polido, caixas de fósforos a eles atreladas em nossas brincadeiras. Em algumas noites ouvia, já deitado o som compassado de um martelo. Vinha da Vila Militar no sopé da Pedra da Cutia intercalado com o piar agourento de uma coruja.
            Sabia que vinha de uma carpintaria ultimando o “paletó de madeira” para alguém. Às 22 horas soava o toque de silêncio no quartel. As marteladas cessavam. As pálpebras pesadas caíam e a medo cobria com o lençol a cabeça e me achegava mais a minha avó, com quem dormia.
            Isto se resumia no cotidiano, mas havia os dias especiais onde outros sons se juntavam. As novenas de maio, sobretudo as do São Gonçalo, ao fim da solenidade litúrgica, terminava com a queima de fogos no atrio da Igreja, iluminando e espocando na noite calma.
             O Toque de Sinos tinha entonações variadas se comparadas ao registro humano de vozes. Os do São Francisco no primeiro plano de maior porte soavam como baixo, em contraste com os do São Gonçalo, mais abaritonados. Em quanto isso, os do Rosário, tenores, sons esmaecidos pela distância. O Sino do Carmo eram os de menor calibre, sopranos do quarteto, feminilidade acentuada no som agudo, repicando ligeiro, acompanhados e substituídos por uma quadra irreverente pela molecada:
                                   “Irmã de caridade,
                                   só mija em pé,
                                   não mija sentada,
                                   porque não quer.”
           O que não deixava de ser uma ignomia para a época pouco afeita a estas licenciosidades. Na austeridade do claustro, as piedosas Vicentinas que se esmeravam na educação das moças da cidade, de maioria católica não mereciam o teor irreverente de nossa imaturidade inconseqüente aos ritos da Igreja. Um atestado disso era a Semana Santa onde até a natureza contribuía para o arrefecimento sonoro.
            Os passarinhos pareciam cantar baixinho. As pessoas baixavam o tom das vozes, os raros taxis e automóveis só usavam buzina em último caso. Os motorneiros desciam a Dom Fernando deixando o veículo a sabor da gravidade usando os freios a intervalos curtos para um descenso suave.
            A gravidade também assomava olhares e semblantes. Os passos se tornavam lentos pela introspeção respeitosa. Homens sisudos e graves, mulheres com xales negros, missais e terços nas mãos, dirigiam-se para as igrejas afins da Vigília que antecedia a procissão. Nas casas o respeito não era menor, as imagens eram cobertas com panos pretos ou roxos.
            O fulcro se deslocava para cozinha. Éramos solicitados, a “arraia miúda” para escalhavar patas e arcabouços de siris e caranguejos cuja massa era misturada às ostras, mariscos e outros frutos do mar para o preparo da torta, enquanto a empregada ou minha mãe batia os ovos para a cobertura que dava o toque final, aquela cor de ouro velho com círculos concêntricos de cebola, saindo ainda quente do forno.
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            De súbito, o silêncio era interrompido inesperadamente pelas AR-15 da época. Elas disparavam do adro das igrejas não balas tracejantes, sibilantes e mortíferas, atestado da extrema violência dos nossos dias, mas um som singular e inofensivo das matracas anunciando sim, uma extrema violência ocorrida a 2.000 anos atrás. O som induzia a uma profunda reflexão interior. As do São Francisco, respondiam as matracas do adro do São Gonçalo, Catedral e Rosário. Homens graves, sisudos, portando as opas de cada Irmandade, inofensivamente “guerreavam” até as últimas horas da tarde a intervalos curtos, precedendo a procissão do Senhor Morto, saída da catedral invariavelmente na seguinte ordem: À frente o andor do Senhor Morto. Atrás, um pálio violeta com debruns dourados, abrigavam a figura rotunda e simpática de Dom Luís Scortegagna. Solidéu, capa escura contrastando com o traje púrpura, um cinto largo da mesma cor, sapatos negros luzidios com fivelas douradas portando o Ostensório, ladeado de padres, cônegos e monsenhores. Coroinhas em longas batas negras e camisas brancas rendadas conduziam turíbulos para o incensório. Ginasianas do Espírito Santo e São Vicente, normalistas, colegiais do Carmo (estas impecáveis) com sapatos negros de verniz, meias, saias azuis plissadas, camisas de tusor de seda palha, gravata e boina e nas mãos luvas brancas portando missais, alguns de madrepérolas e terços. Escoteiros e Bandeirantes. Atrás o povaréu contrito e aquela molhe humana movendo-se lentamente, cantando os hinos sacros pela banda militar que fechava o cortejo. Paradas para as Estações com o Cântico da Verônica. Ladeando o povaréu, enfileirados, seguia os componentes das irmandades, opas sobre o terno, tendo nas mãos imensas velas acesas. O outro dia, Sábado de Aleluia era ruidoso de foguetes espocando entre o vozerio alto da molecada na malhação de Judas. No Domingo, o repicar do sino às 10 horas, assinalava os festejos da Ressurreição.

Memoria sin la qual
Yo no sabria
Que aquella do passado
Aspira ser la misma
Memoria que sustenta el ayer
De aquello que a fue
Y nunca mais volverá a ser.
Memoria que me dás identidad
En cotejos de recuerdos
Con imagenes cargadas
De distancia e soledad
Quando dormida estoy
Tu te convertes
En sueños, ensoniãcion o pessadillas
Diosa memoria, as veces no se quien eres
Adonde moras.

Elena Teresa José


Quedo-me na indagação ao meu espírito, baixo o belo poema de Elena Teresa José, o porquê da presença dos sons em minhas lembranças infantis, e os registros sonoros ouvidos em minha pouca idade, ter marcado tão fortemente minh’alma?
-       O que me levaria a senti-los tão intensamente em minha meninice, e extrapolá-los agora em minha senectude em lembranças doces e suaves, sons que esvairam no tempo e no espaço, e retornam fortes aos sinos da Memória, das fontes das quais emanaram, pungentes de saudade, se não pela intemporalidade do Espaço-Tempo a que se reduz toda a Eternidade?
Outros em meu querido morro, vizinhos, moradores e transeuntes os ouviram, mas não centraram na cor e na imaginação que os registros sonoros calam profundamente na alma, em suas várias tonalidades quando estamos atentos a eles, da mesma maneira que a cor em seu valor intrínseco tem suas variações no correr das horas, tão bem expressa no Impressionismo pictórico, forma de arte a que eu e meu pai nos dedicamos.
Tive minha oportunidade para abordar as duas frentes: a cor e o som. Ganhei um violino aos nove anos e professora na Vila Rubim. Não dei continuidade. Queria a vida livre, longe dos ambientes fechados sujeitos à exercícios enfadonhos. Ele, meu pai esteve nas duas frentes de expressão artística. Poucos o sabem. Aprendeu a tocar violoncelo com o prof. Eduardo de Andrade e Silva que por sua vez teve ensinamentos de um celista uruguaio que aportou Vitória em fins da década de 20. Com isto tive o primeiro contato com a música clássica e acrescento mais esses sons que ouvia enlevado do violoncelo tocado pelo meu pai em nossa sala de visitas. De lá vinham os acordes do Cisne, do Carnaval dos Animais de Camille Saens Saens e a Elegie de Jules Marssenet. Entre outras peças de rara beleza mais tarde por mim identificados os autores.
            Dublê de artista-desportista abandonou o instrumento por força de um acidente futebolístico que lhe atrofiou o dedo mínimo da mão esquerda justamente a que entrava em contato íntimo com as cordas e isto despertou em mim muito cedo o ouvinte constante da grande música e sentir nos grandes mestres que a percepção dos sons na Natureza estava presente nas suas obras. Com isso, não preciso sair da minha sala para grandes viagens em companhia deles.
“A longa introdução das cordas persistentes com pequenas variações na abertura da 1ª Sinfonia de Gustav Mahler sugerindo a dissipação da neblina para a nitidez das formas no campo vienense, antecede as madeiras que expressam o canto das cotovias e do cuco, ao amanhecer”.
Já que estou na Áustria, porque não ser eu mesmo um excursionista tentando uma ascensão na base do Mont Blanc e sentir o frescor da aragem da manhã, e o vento suave naquele momento roçar a neve e levantar uma leve poeira? E, ao meio-dia me retirar do cenário por precaução aos primeiros sinais da tempestade que se avizinha expressas no fragor e embates dos metais e o rugido dos trovões nos tímbales que antecede à chuva e a avalanche!
            Cessado o tumulto orquestral, as cordas iniciam um Cântico de amor na Natureza que transcende o amor egoístico, particular, limitado e individual dos humanos. É um amplexo, pleno, total, cósmico, sob o qual o Mont Blanc jaz, imóvel e sereno banhado pela luz do luar, beijado pelas estrelas que brilham na noite fria, na Sinfonia Alpina de Richard Strauss.
Assisto o naufrágio do navio de Simbad, o marujo, jogado contra os rochedos pela tempestade, ouvindo o vento fustigando, velas e cordoames e o fragor das águas encapeladas na Sherazade de R. Korsakov.
Já em Roma, ouço o rouxinol cantar no alto dos pinheiros junto à Vila Borghese. Desloco-me um pouco, para ouvir o fragor da passagem das hordas.
Romanas que regressam à Pátria, as trompas sugerindo o desfile guerreiro, sons que se perdem no horizonte tonal, junto aos pinheiros da Via Áppia de Otorino Respighi. Em 6 ou 7 minutos de encantamento sonoro, assisto o desfilar de uma caravana nas Stepes da Ásia Central em companhia de Borodin.”
Ao citar estes exemplos, sons tornados música, volto ao meu querido Morro na minha terra natal. Pareço ouvir de novo a banda militar do quartel tocar a alvorada do Lo Schiavo de Carlos Gomes e identificar o canto dos nossos pássaros as margens do rio Paraíba, cenário da sua magnífica obra, o que não pude identificar quando a ouvia em minha meninez. E como num Clichê Astral, os pássaros que me rodeavam outrora, voltaram a cantar alegremente enquanto os camaleões e lagartixas riscavam o embasamento de pedras negras no convento balançando as cabeças em sinal de aprovação à luz do sol pleno. Quedo-me pensando na Diosa Memóia que me dá identidade em cortejos de recordações de imagens carregadas de distância e solitude como no belo poema de Elena Teresa José, os sons da minha terra natal atravessaram os anos da minha existência e ressoam em minh’alma em minhas recordações, pejadas de saudade.
Vem a minha memória um conto chinês que li há muitos anos atrás. “O veado oculto” de Liehtse.
“Um rachador avistou um veado, atirou nele e o matou” Escondeu-o com toras de madeira e ramos, mas esqueceu-se onde o tinha escondido e pensou que tudo não passava de um sonho.Como sonho contou a varias pessoas na rua. Um ouvinte escutou a narrativa, foi em busca do animal e o achou.Trouxe-o para casa e disse à mulher.
-     Há um rachador que sonhou que matou um veado e se esqueceu onde o ocultou. Eu fui ao bosque e o achei. Realmente ele sonhou.
-     Deve ter sonhado que vistes um rachador matar o animal   -   Será que houve deveras um rachador?
-     Mas, conseguistes o veado, o teu sonho é que foi verdadeiro.
-     Ainda que eu tivesse o achado em sonho para que afligir-me pensando que foi ele que sonhou ou se fui eu? O rachador voltou para casa pensando no veado e teve realmente um sonho, viu o lugar onde o escondera e soube em sonho quem o descobrira. Foi a casa dele, travaram uma questão e foram ao juiz para decidi-la. E, este disse ao rachador.
-     -Mataste em realidade um veado e pensastes que era um sonho. Depois tivestes realmente um sonho e pensastes que era realidade. Ele realmente achou o veado e agora discute contigo por isso, mas sua mulher pensa que ele sonhou que tinha achado um veado morto por outra pessoa, logo ninguém na realidade matou o animal. E deu uma sentença salomônica.  -  Podeis dividi-lo entre vós ambos. A história chegou aos ouvidos do Rei de Cheng e disse o Rei entre risos. -  Há! Há! Há! Não está o juiz sonhando também que divide o veado entre os dois homens”.
Esta tomo como referência entre o real e o imaginário ou seja entre o sonho e a realidade.
-     Existiu realmente um menino de oito anos, narrando o acontecimento que se desenrolaram à sessenta e dois anos em Vitória? Seria possíveis o cenário e a narrativa? Quedo-me pensando como é fértil a imaginação humana. E pobre de mim prisioneiro de lembranças. Contudo se uma criança de repente aos oito anos entrasse em um bonde nos dias de hoje teria os olhos arregalados de prazer longe da parafernália do trânsito em nossos dias. Tudo isso em nome do “progresso”. E pobrezinhas enjauladas em pífios apartamentos ou dormindo nos vãos dos viadutos. Qual o cenário escolhido? O sonho ou a realidade?






“Fefeu”

È realmente difícil a análise dos acontecimentos ocorridos em nossa infância. O narrador é um menino, sujeito às estreitezas dos poucos anos vividos, o que limita a narrativa, se não fosse acrescentada à mesma, a visão madura e global, o universo ampliado dos acontecimentos o porquê eles foram desencadeados, cujo conteúdo e profundidade ele vai assegurar-se mais tarde na idade madura.
Contudo, o que me proponho narrar, são fatos que ficaram indeléveis em minha memória, os clichês dos momentos vividos, sobretudo porque foram marcados pela tragédia, e brutalidade, que abalou profundamente o meu espírito infantil, pois nunca, até então tinha presenciado, e me defrontado com a violência, em minha calma e pacata cidade.
Estava com nove anos de idade, e difícil foi para eu aferir graus de intensidade e dramaticidade, naqueles dias. Só o tempo se encarregou de sanar em meu ego as lembranças daquele dia fatídico. O dia 13 de fevereiro foi um dia negro nos anais de Vitória. O dia não, pois foi esplendoroso de um sol radiante em um céu sem nuvens. Mais precisamente a noite marcada por acontecimentos políticos, que só mais tarde pude perceber a extensão.
Meu pai ao almoço comentara com minha mãe, algo ligado a política. Afinal ele trabalhava em plena sede do Governo e estava ao par de novidades. À noite após o jantar, inquieto e movido talvez pela curiosidade chamou-me e eu o acompanhei. Eram cerca de vinte e trinta da noite. Descemos nossa curta rua e a esquerda subimos a ladeira que conduzia para os lados da Pedra da Cutia e Fonte Grande.
Na altura da atual rua Henrique de Novaes, há aquele tempo ainda um denso matagal, onde pontilhavam aroeiras, baúnas e bagueiras, nos postamos a cavaleiro, com uma visão ampla e privilegiada dos acontecimentos, cujo palco era o triângulo formado ao pé da escadaria do Colégio do Carmo, fartamente iluminada, literalmente tomada por assistentes que se espraiavam até a Rua Coutinho Mascarenhas.
Ao longo da Rua Coronel Monjardin, a cavalaria da polícia militar, armados de sabres, estabelecia um denso cordão de isolamento.
Discursava no alto da escadaria, segundo vinha saber mais tarde, um dos caravaneiros da Aliança Liberal, um brilhante orador Cel. Pires Rabello, senador pelo Piauí. Estávamos ali por cerca de uma hora apreciando os acontecimentos, quando de repente, não mais que de repente ouviu-se tiros e a multidão se dispersando em várias direções.
Vi então a movimentação da cavalaria em perseguição a populares correndo pela rua Cel. Monjardin para o Largo de S. Francisco, alguns subindo o Quarto de Queijo, outros descendo a Rua Caramuru e D. Fernando e alguns adentrando a nossa rua.
Retiramo-nos eu e meu pai correndo e abrigando em nossa casa um grande número de pessoas, nervosas e agitadas. Fui para a janela dos fundos e vi a molhe humana que tinha descido a rua D. Fernando ganharem a Praça do quartel e se dispersarem par os lados do Parque Moscoso e ruas adjacentes.
Não havia rádio nem notícias. O remédio era esperar acordado, fazer café para os inesperados visitantes que se retirarqam a medo, e paulatinamente, até aos albores de um novo dia. Pela manhã inteirei-me dos acontecimentos daquela noite pressaga, que enlutou minha cidade alta o meu morro do S. Francisco.
Um rapaz “ FEFEU”, Alfeu residente na Ladeira do Azambuja tinha sido vítima daquela brutalidade no vigor dos seus dezenove anos. Encontrava-se ele sobre uma árvore naquele triângulo fatídico olhando os acontecimentos assistindo o comício. Um cavalariano armado de sabre ordenou e fê-lo descer da árvore arremetendo o cavalo sobre o rapaz, cujas patas o atingiram no peito. Também vim, a saber, que a cavalaria estava embriagada por ordem do Governo o que justificou o ato covarde.
Filho dileto de uma libanesa dona na época do Armazém Quarto de Queijo, querida pela vizinhança, surpreso, indago porque carpideiras no oriente? Aquela mulher desesperada chorava por quinze ou vinte delas. D. Maria tinha perdido o seu “menino”. Nós da cidade Alta e arredores de S. Francisco ganhamos o nosso “mártir”, um mártir da nova República que surgiria na vitoriosa Revolução de 24 de Outubro daquele  mesmo ano.
O Brasil iria viver sobre a égide de Getúlio Vargas até 1945, período da minha mocidade, vivencia esta que analisarei mais tarde, este espaço de tempo que marcou profundas modificações no País e conseqüentemente na sociedade de minha terra.
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